É a política interna, estúpido
Talvez Trump acredite, mesmo, em Obama. E acossado pelo impeachment, por um lado, e em ano eleitoral, por outro, entenda que tem vantagem ao desviar a atenção do primeiro e ganhar votos no segundo. O Irão é outra história e sai derrotado desta crise.
Trump disse por várias vezes que Obama teria lançado uma guerra contra o Irão para favorecer a sua reeleição. E disse-o tão convictamente que parece certo de que lançar uma guerra em vésperas de eleições é uma estratégia ganhadora e pode garantir a eleição. Dia 3 de Janeiro o Presidente americano ordenou o assassinato do general Soleimani, comandante da unidade de elite dos Guardas da Revolução, arquiteto da estratégia de influência iraniana no Médio Oriente e, ao que dizem, o número dois do regime de Teerão. À parte a questão ética que o assassinato político levanta que não pode deixar de merecer condenação, que sentido poderá ter este ato de política externa, para muitos casus belli?
Foram vários os argumentos políticos invocados pelo Presidente Trump. Primeiro, que o general iraniano estaria a preparar uma série de atentados contra interesses norte-americanos no Médio Oriente. Mas o secretário de Estado, Pompeo, já se encarregou de dizer que os Estados Unidos não tinham sobre isso quaisquer provas. E o Presidente não perdeu tempo e twittou, de imediato: que ter ou não ter provas não tinha qualquer importância. Estamos conversados.
Segundo, que tinha o objetivo de reduzir ou eliminar a influência do Irão no Médio Oriente. Mas vale a pena dizer que a eliminação física do homem não elimina a instituição nem a política. Os Guardas da Revolução continuam e continua a sua unidade de elite. Com um novo comandante e uma dotação orçamental reforçada em 200 milhões de dólares. Sinal de que a política de influência iraniana na região vai continuar e a estratégia de violência também. A médio prazo, pode levar ao reforço da guerra assimétrica e a uma maior pressão para a saída das tropas americanas.
Terceiro, impedir que o Irão tenha a arma nuclear. Mas a denúncia unilateral dos Estados Unidos do acordo nuclear, no ano passado, parece estar a conduzir ao resultado contrário: levou o Irão a não cumprir as metas de enriquecimento de urânio previstas no acordo, a regressar ao programa de mísseis balísticos e, agora, a ameaçar, também ele, denunciar o acordo. Mais, no pico da crise, fica claro para o Irão (como o ficou para a Coreia do Norte) que a única forma de “santuarizar” o seu território é a arma nuclear. Nada disto, bem entendido, facilita o cumprimento ou a renegociação do acordo, que Trump diz querer. Isto é, não impede e, quem sabe, antes aproxima o Irão da opção nuclear.
Finalmente, a mudança do regime em Teerão. Mas o que esta operação fez, pelo contrário, foi desviar a atenção da crise interna e do protesto social contra o regime de Teerão, alimentar o nacionalismo iraniano e unir os iranianos em torno do poder estabelecido. Isto é, enfraquecer os moderados e reforçar a ala mais conservadora e mais radical da república islâmica. Ou seja, o contrário do interesse americano. O que explica então uma tal decisão? É que talvez Trump acredite, mesmo, em Obama. E acossado pelo impeachment, por um lado, e em ano eleitoral, por outro, entenda que tem vantagem ao desviar a atenção do primeiro e ganhar votos no segundo. O Irão é outra história e sai derrotado desta crise. Não pela operação norte-americana, mas pelo abate do avião ucraniano. Não derrotado pelos Estados Unidos, mas derrotado por si próprio.
O abate do avião provocou a morte de 176 pessoas, muitas delas cidadãos iranianos. O Irão começou por alegar problemas mecânicos e negar, categoricamente, a autoria do desastre. Afirmou que a caixa negra estava danificada, depois admitiu que não, mas que não seria entregue. Finalmente, decidiu entregar. Admitiu a falha humana e a autoria da tragédia. O avião fora abatido, por engano, por uma bateria de mísseis da defesa antiaérea dos Guardas da Revolução. Prometeu, então, julgar e punir os responsáveis. Tarde de mais. A população em massa já estava nas ruas e num protesto sem precedentes exigiu, aberta e frontalmente, a demissão do líder supremo. Nunca tal tinha acontecido. Foi violentamente reprimida com gases lacrimogéneos e fogo real. Incompetência, ocultação e repressão, tudo de um só golpe, puseram a nu a verdadeira natureza da ditadura teocrática. À tragédia humana soma-se, agora, a crise interna. O Irão vai a eleições a 21 de Fevereiro, os Estados Unidos a 3 de Novembro. Veremos, então, as consequências da crise. Mas numas como noutras é caso para dizer: é a política interna, estúpido!