Trump e a relação transatlântica
A política externa da Administração Trump põe problemas difíceis e de monta à UE e aos aliados tradicionais dos EUA.
1. Já o escrevi aqui diversas vezes, de modo mais aberto ou mais subtil: a linha política da Administração Trump é o factor que mais activamente tem contribuído para a debilitação da relação transatlântica e para o enfraquecimento do Ocidente. Isto não significa que essa linha política seja inédita no registo da política externa americana. Aliás, e até contra a intuição prevalecente, tal orientação revela alguns traços de continuidade com a Administração Obama. Sem querer entrar num debate teórico ou doutrinal, que seria todavia pertinente, a verdade é que há raízes longínquas e remotas na visão de Thomas Jefferson e raízes próximas e mais palpáveis no populismo de Andrew Jackson.
2. A hostilidade de Donald Trump relativamente à União Europeia é o factor mais perturbador. A actual administração americana não perde uma oportunidade para desgastar a integração europeia. Não está apenas em causa o apoio activo e quase entusiasta ao “Brexit”. Está também em jogo o apoio a todos os líderes que, um pouco por toda a Europa, de uma forma ou doutra, atacam o projecto europeu. Ninguém tenha dúvidas de que existe um Viktor Orbán antes da eleição de Trump e outro depois dela. E de que o mesmo se pode dizer de Kaczynski e do seu partido polaco. O respaldo norte-americano a Salvini e às suas posições é também evidente. Este mesmo tipo de solidariedade estende-se a Le Pen e aos seus congéneres holandeses, austríacos e similares. Não se trata sequer de um segredo de Polichinelo, pois esta estratégia foi de há muito desvendada por Steve Bannon, que, de resto, é agora o seu promotor em solo europeu. Parece óbvio que enfraquecimento do aliado europeu não corresponderia ao interesse dos EUA, mas a verdade é que esse desiderato é prosseguido com denodo e um agudo sentido da oportunidade ou das oportunidades. Olhando para o xadrez geopolítico global, não consegue divisar-se qual o ganho dos EUA com a turbulência na Europa. Não há, com efeito, contributo maior para o declínio do Ocidente do que a quebra de confiança entre estes dois pólos da relação transatlântica.
3. Tão ou mais intrigante do que esta atracção pela instabilização do continente europeu vem a ser a relação que se pretende estabelecer com a Rússia e com a China. Por razões diferentes e com estatutos bem diversos, a Rússia e China são potências rivais dos Estados Unidos. A Rússia compete pela hegemonia militar e por algum controlo geopolítico (agora tão ostensivo no Médio Oriente); a China compete abertamente pela hegemonia militar, económica e geopolítica global. Ambas as potências são ditaduras, com práticas sistematicamente violadoras dos direitos humanos, nos antípodas do que é a matriz democrática e civilizacional dos EUA. Na diplomacia de Trump, no entanto, há uma manifesta simpatia por aquelas potências, pelos seus regimes e pela ideia de um entendimento quanto ao controlo geopolítico global. Basta ver o que representa hoje a presença da China no continente africano ou na América Latina, para logo perceber o terreno que os norte-americanos estão a perder no mapa geopolítico global. Ainda assim, a empatia com aquelas potências é persistente.
4. Esta predilecção por regimes ditatoriais ou musculados, por forças políticas que não prezam nem a independência dos tribunais nem a liberdade de expressão, é ainda visível na América Latina. Também aí, mais um dos pólos estruturantes do Ocidente, os EUA têm mostrado simpatia por “desenvolvimentos políticos” que afastam ou podem afastar aqueles Estados dos cânones democráticos.
5. Como pano de fundo desta leitura geopolítica, está naturalmente uma pulsão fortemente isolacionista que se faz sentir tanto no comércio como na segurança e defesa. Já não falo da desconfiança ou até hostilidade à NATO (que não tem precedentes). Falo justamente na linha política prosseguida no Médio Oriente, até aqui sempre com sinais de retraimento e retirada. No que à presença militar diz respeito, Trump segue, aliás, as pisadas de Obama. Continuidade que, diga-se de passagem, vale também para a já mencionada “desvalorização” da Europa, de que Obama só parece ter-se arrependido no último ano do segundo mandato. Há, por um lado, a presa exercida pela ideia de que a dinâmica global transitou do Atlântico para o Pacífico. E, por outro lado, a auto-suficiência energética dos EUA, que “diminui” a importância estratégica do Oriente Médio. Ambos os factores são válidos para as presidências de Obama e de Trump. Um terceiro factor – o factor isolacionista –, por sua vez, já só vale, enquanto fundamento ideológico, para a Administração Trump. O isolacionismo em Trump é entendido não só como um “fechamento” dos Estados Unidos sobre si, mas é ainda estendido a uma certa compreensão das relações internacionais (e tem consequências sobre ela). Não se trata, efectivamente, apenas de reduzir o comércio externo e a cooperação internacional; trata-se também de “autorizar” ou “legitimar”, ao menos ao nível doutrinal, uma actuação unilateral, baseada unicamente no “interesse nacional”. Naturalmente, esta compreensão deixa para trás o direito internacional e a sua base de legitimação.
6. É este o “ambiente” legitimador que explica a acção unilateral de ataque a um dignitário do Estado iraniano. Para lá das consequências imediatas e mediatas na região, que exponenciam as perspectivas de agravamento das tensões e conflitos, fica o efeito altamente pernicioso do “exemplo” ou do “precedente”. Não faltarão Estados ou até outras entidades capazes de vislumbrar momentos em que esta novel “razão de Estado” pode operar.
7. A política externa da Administração Trump põe problemas difíceis e de monta à UE e aos aliados tradicionais dos EUA. De todo o modo, e designadamente para um país com o posicionamento geopolítico de Portugal, é fundamental preservar a relação transatlântica e, seja qual for o desenlace eleitoral das presidenciais de 2020, ver para lá da era Trump.
SIM. João Vale de Almeida. Com uma carreira notável, é agora a escolha da UE para ser embaixador junto do Reino Unido, o primeiro depois do Brexit. Bom para a UE, melhor para Portugal.
NÃO. Regime iraniano. Depois do abate imperdoável do avião ucraniano, agora volta a repressão dos manifestantes que contestam o regime e o Governo. A teocracia não se recomenda.