Megaprocessos arrastam-se por falta de sensibilidade política, acusa presidente do Supremo
Com o actual quadro legal e financeiro, “os juízes podem trabalhar 24 horas por dia e 365 dias por ano, que estes processos continuarão a levar anos”, diz o presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Na abertura do ano judicial, incitou o poder político a alterar a forma como a justiça lida com os casos de maior complexidade.
A falta de sensibilidade política é um dos factores na origem do arrastar no tempo dos megaprocessos, acusou esta segunda-feira o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Joaquim Piçarra, na cerimónia solene de abertura do ano judicial.
Com o actual quadro legal e financeiro, “os juízes podem trabalhar 24 horas por dia e 365 dias por ano, que estes processos continuarão a levar anos” até chegarem ao fim, explicou o magistrado, que no seu discurso incitou o poder político a alterar a forma como a justiça lida com os casos de maior complexidade.
Sem nunca referir processos concretos, como a Operação Marquês ou o império do Grupo Espírito Santo (GES), Joaquim Piçarra recordou a forma como a criminalidade económico-financeira recorre a mecanismos de ocultação da riqueza altamente elaborados, cuja descoberta implica uma cooperação das autoridades estrangeiras nem sempre bem-sucedida. É o que tem acontecido com o universo GES, por exemplo, cujos procuradores aguardam há anos que as autoridades helvéticas lhes forneçam documentos indispensáveis para produzirem uma acusação.
Quando os casos chegam finalmente às mãos do juiz para serem decididos e este tem pela frente a audição de centenas de testemunhas, bem como a leitura de milhares de documentos, é impossível pedir-lhe que seja rápido.
“Se o nosso sistema legal e organizativo exige e impõe que estes processos complexos se tornem edifícios faraónicos de factos e de provas, a sua conclusão levará sempre vários anos”, avisou o presidente do Supremo Tribunal de Justiça. “É isso que quero enfatizar, dirigindo-me directamente aos responsáveis políticos e ao povo português.”
A manter-se o quadro legal e organizativo vigente, “será cada vez mais normal que os processos judiciais complexos levem anos em investigação e muitos anos em julgamentos e recursos”, antecipou o magistrado. Não por laxismo, mas como consequência da lógica e da organização do sistema.
O que fazer então? Sem nunca defender explicitamente uma mudança do regime que permite a criação de megaprocessos por parte do Ministério Público, Joaquim Piçarra defendeu a modificação do actual quadro legal, embora ciente da dificuldade desse tipo de medidas. Mas também a dotação de verbas no orçamento do Conselho Superior da Magistratura que permitam a este órgão criar gabinetes de apoio aos juízes, já de resto previstos na lei. Foi aqui que surgiu a crítica à insensibilidade do poder político: “A persistência em não incluir, no orçamento do Conselho Superior da Magistratura, verba suficiente para os legalmente previstos gabinetes de apoio aos juízes não atesta que tenha existido, até ao momento, grande sensibilidade para esta matéria.
A manutenção do actual estado de coisas também é possível, admitiu. “Mas tem consequências”: a aceitação de que a resolução dos megaprocessos demore anos a fio. “A equação para superar este quadro não está nas mãos da justiça”, insistiu o presidente do Supremo, que se mostrou ainda preocupado com as restrições que estão a ser colocadas à independência da justiça no espaço europeu. “É esse perigo que vejo ganhar corpo a cada dia, sem um único sobressalto”, observou, criticando a nova Comissão Europeia pelo seu alheamento em relação a esta matéria.