Aprovar um orçamento como se dança um tango
O que parece surpresa e improviso é estratégico. A carga dramática é treino. E o resultado final depende sempre do nível do entrosamento.
O Orçamento do Estado para 2020 já não é um slow que os parceiros de governação dançam agarradinhos até de madrugada, com conversa pelo meio e, sobretudo, muita sedução. Continua a ser uma espécie de dança, mas mais parecida com um tango. Mais complexa. E infinitamente mais teatral. O que parece surpresa e improviso é estratégico. A carga dramática é treino. E o resultado final depende sempre do nível do entrosamento. Tem tudo a ver com habilidade. Só há uma coisa que não bate certo: o tango é sensual e expressivo, mas a dança do orçamento não tem pausas sexy e é pouco transparente.
O tango dança-se a dois, peito com peito, e as conversas sobre Orçamento do Estado também são sempre bilaterais. Mesmo que o executivo sinalize que quer continuar a negociar com todos os partidos da esquerda mais o PAN, as conversas decorrem entre o Governo e o Bloco, ou o Governo e o PCP, e por aí adiante, incluindo o PEV e o Livre. Dir-se-ia que é o executivo que conduz a “dança”, mas muitas vezes parece que é o parceiro da ocasião. Faz parte das negociações.
No último fim-de-semana, Catarina Martins quis liderar a coreografia. A líder do Bloco de Esquerda disse que o partido não está disponível para votar a favor do OE 2020 e que até mesmo a abstenção está em dúvida. Depende do empenho do PS no tango, confirmou. Foi um momento de tensão, em que o BE avançou sobre o Governo com agressividade e passo seguro.
E António Costa, recuou? Nem por isso. Reagiu ao ataque com optimismo e sem hesitações. “O Orçamento trabalha-se até ao último dia”, disse a partir do Porto, sem desviar o olhar para a direita do espectro partidário. “Temos estado a encontrar soluções. Hoje estamos seguramente mais próximos do que há uma semana”, acrescentou o primeiro-ministro, mostrando que acredita que “há condições para acabar tudo bem”.
O Governo quer manter a música a tocar, tal como exige o Bloco de Esquerda, e faz questão de repetir que este é um orçamento sem passos atrás, sem retrocessos e com consolidações. O Livre também se disponibilizou (ao adiar uma decisão sobre o sentido de voto) para continuar a dança. E o PCP, apesar de se manter em silêncio, também está a participar no bailarico que são as reuniões bilaterais.
No fim, só não se sabe quem oferece a rosa a quem e quem a leva na boca. O que sabemos é o que Jerónimo de Sousa já disse várias vezes: “Não peçam ao PCP que seja peninha no chapéu.”
Num livro inédito, editado em 2018, Jorge Luís Borges dizia que “o tango dá-nos a todos um passado imaginário”. No caso deste tango orçamental, em particular, esperamos que nos dê um futuro luminoso.