Suleimani ou a história de uma erva daninha
O principal objetivo estratégico de Teerão não é infligir uma derrota aos EUA, nem defender o seu território, é simplesmente a sobrevivência do regime teocrático. Neste sentido, a paciência estratégica poderá sobrepor-se à sede de vingança.
Qassem Soleimani, o “mártir vivo”, desde 1998 comandante da unidade militar Força al-Quds da Guarda Revolucionária Islâmica (falada no Irão abreviadamente por Sepah), que era o combatente mais procurado, e o mais avistado, do Médio Oriente, omnipresente nas principais frentes de batalha, desafiando e confrontando há décadas Israel e os EUA, figura ímpar na tentativa iraniano-xiita de redesenhar os equilíbrios no Médio Oriente, acha-se, enfim, mártir. Precisamente, quando a sua estratégia para o crescente xiita patenteava consolidação, coadjuvada pelo vácuo de poder criado pela retirada militar norte-americana.
A análise generalizada parece antever uma escalada militar a caminho de uma nova guerra nesta região do globo, diligenciada pelas habituais “manobras na Casa Branca”, desta vez, com o objetivo de encobrimento do processo de impeachment em curso e preparação da reeleição do atual Presidente. Por vezes, devemos travar o ímpeto analítico, embora a realidade geopolítica nos pareça presa por um fio.
Tudo indica que Soleimani se encontrava em Bagdad para inspecionar in loco as manifestações orquestradas pelo Irão, e compostas pelas milícias pró-iranianas, contra a Embaixada dos EUA no Iraque, a qual é a maior e mais fortificada representação diplomática norte-americana no mundo (em períodos da intervenção dos EUA no Iraque chegou a contar com mais de 500 funcionários só da CIA), sem dúvida um “objeto soberano” único no mundo.
A nova vaga de antiamericanismo que está a ser incentivada por Teerão no Iraque, visa contrapor-se à insatisfação popular crescente contra a permanência e interferência dos agentes ou aliados iranianos, em violação da soberania do país. A “derrota” territorial da organização terrorista estado islâmico, não significou o desmantelamento das milícias pró-iranianas espalhadas pela região, nem o fim das ambições hegemónicas de Teerão, vetores estratégicos que dispõem oposição enraizada nos espíritos nacionalistas do Médio Oriente, agora bem visíveis no Iraque e no Líbano.
As representações diplomáticas do Irão em Najaf e Kerbala (os dois locais mais sagrados do xiismo, localizados ao sul de Bagdad) já tinham sido atacadas pela populaça, a qual, ao revés do que sucedeu no caso da Embaixada norte-americana situada na ultra fortificada Zona Verde, sofreu fortes represálias das autoridades iraquianas, provocando dezenas de mortos entre os manifestantes.
Neste contexto, os sinais apontam para que, desta vez, Washington tenha assumido o risco de cortar o mal pela raiz, impedindo que Soleimani restaurasse a sua estratégia de “guerrilha urbana” contra os EUA (apesar dos EUA apenas disporem de cerca de 5000 militares no Iraque), que tanto sucesso obteve após a invasão norte-americana do Iraque (2003-2011).
A estratégia de “decapitação” da liderança do adversário é conhecida nos meios da inteligência norte-americana por “aparar a relva”. Sabendo que não representa uma solução, mas apenas uma forma de impossibilitar o crescimento rápido do inimigo, ou seja, ganhar tempo. Apesar de controversa, esta estratégia de “assassinatos seletivos” tem demonstrado a sua eficácia, ao infligir danos consideráveis nos adversários da luta contra o terrorismo.
Washington tinha deixado avisos claros do que poderia suceder: em abril de 2019 os EUA designaram a Sepah como organização terrorista e, já em janeiro de 2018, os EUA tinham levantado a interdição política, estabelecida pela Administração Obama, de “neutralizar” o comandante da Força al-Quds.
Soleimani, o ubíquo, que se recreava a tirar selfies por onde passava, ao mesmo tempo que troçava de Trump, esqueceu-se do caráter “imprevisível” do Presidente norte-americano, neste caso como vimos muito previsível, o que não significa que este tenha uma estratégia para provocar a ambicionada mudança de regime em Teerão. Curiosamente, num tempo em que, nos Estados Unidos se efetuavam balanços das guerras do Iraque e do Afeganistão, por forma a prosseguir a estratégia de não-envolvimento militar na região.
Parece que este final de ano iraniano, que só termina a 21 de março de 2020, está a ser sentido com algum nervosismo em Teerão. À contestação antiregime interna juntam-se as manifestações nacionalistas contra o papel de Teerão na sua esfera de influência. Com o regime a reagir insistindo na aplicação do mesmo manual de contrasubversão (veja-se, em 2016, o ataque à Embaixada da Arábia Saudita em Teerão), passada uma década das megamanifestações do Movimento Verde.
Durante duas décadas de operações ofensivas, Soleimani forjou relações pessoais imprescindíveis para a expansão do “eixo de resistência” iraniano, que vão desde Gaza, passando por Beirute, Damasco, Bagdade e, mais recentemente, adicionaram Moscovo, constituindo-se como um dos pilares da projeção externa do regime, apenas reportando ao Guia Supremo Ali Khamenei, portanto a operação de decapitação norte-americana foi de elevada ousadia e provocação.
Sucede que nem todos choram a morte do General. Em diversos quadrantes do Médio Oriente alguns estão a regozijar-se em surdina do desaparecimento do “mártir”, incluindo nos corredores do poder de Teerão. As tensões no seio do aparelho securitário-repressivo são, pela primeira vez, visíveis. O exaurir dos recursos nacionais com as aventuras de Suleimani na região não agradava à maioria da população. No próprio Iraque, os sectores nacionalistas associados al Sadr (líder político de fação) e al Sistani (Grande Aiatola e líder político-espiritual iraquiano), também não irão sentir à sua falta. Enquanto para Ancara e Moscovo é mais um rival que desaparece da equação do Médio Oriente.
Logo, os cálculos estratégicos no seio do Conselho Supremo de Segurança Nacional iraniano quanto às possibilidades de uma retaliação devem ser bem ponderados. Poucas hipóteses credíveis parecem emergir: atiçar o Hezbollah libanês e outros grupos pró iranianos, iniciar uma onde de ciberataques, assediar os interesses norte-americanos na região, em especial o destacamento naval no Golfo Pérsico, emergem como as mais óbvias.
O principal objetivo estratégico de Teerão, não é infligir uma derrota aos EUA, nem defender o seu território, é simplesmente a sobrevivência do regime teocrático. Neste sentido, a paciência estratégica poderá sobrepor-se à sede de vingança, que poderá ser saciada noutra ocasião. Agora, será mais importante manter a capacidade regenerativa do regime, do que cometer um erro estratégico instigado pelo orgulho da elite soberana, que possa conduzir à sua derrocada.
No atual contexto político-social, talvez seja o momento de deixar arrefecer o orgulho persa (note-se que o ataque não foi contra o povo ou o país, foi direcionado ao âmago do regime teocrático) e exercer a poderosa auto restrição, capitalizando com o antiamericanismo que este ataque provocou, interpretado por muitos como ato de guerra, para tentar realinhar as simpatias regionais e globais a favor de Teerão, principalmente entre os detratores de Washington, incluindo na Europa.
Os EUA e o Irão vivem uma guerra sem guerra desde 1979, tendo ocorrido no dia 3 de janeiro, talvez um dos episódios violentos mais marcantes e simbólicos. Contudo, a política do Médio Oriente é caraterizada por um enredo conflitual dinâmico, composto por ataques e contra-ataques, no qual a última ação surge sempre como aquela que nos vai introduzir ao epilogo desse infindável enredo, que nos mantem cativos, mas que nunca terminará.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.