Venga Venga: “Não somos contra nada, mas sim a favor de haver espaço e liberdade para todos”
Dizem não ser contra nada, a não ser o medo, mas sim a favor de haver espaço para todos, com liberdade e igualdade. O casal brasileiro Venga Venga abre a porta aos anos 20, na noite da próxima terça-feira, no MusicBox, em Lisboa, mostrando ao mesmo tempo um novo disco, em que o hedonismo funciona como resistência à intolerância.
Será um baile surrealista, prometem Denny Azevedo e Ricardo Don, e quem já viu os Venga Venga, ou seja, o casal queer de performers e músicos brasileiros que tem agitado a noite lisboeta e europeia de há algum tempo a esta parte, sabe que não é difícil acreditar que será isso que se irá passar na passagem de ano no MusicBox, em Lisboa.
Começaram por dar nas vistas em 2013, emergindo então na fervilhante cena cultural de São Paulo, criando festas-acontecimentos onde a arte, a música e a performance se conjugavam, para de seguida alargarem o seu raio de acção para a Europa. Há cerca de um ano fixaram-se em Lisboa, actuando regularmente por aqui, mas também por Paris, Berlim ou Barcelona, forma de comunicarem a sua postura de estar na vida e na música, um composto modernista onde os traços rítmicos electrónicos se cruzam com referências africanas, europeias ou do nordeste brasileiro.
Acabaram de lançar novo disco, o EP Seres Híbridos, mescla de house, dub ou afrobeat com sons regionais, do maracatu ao baião, e palavras que reflectem um mundo onde a intolerância, o conservadorismo e as crises sociopolíticas ameaçam, mas também a hipótese de as superar, com tenacidade, em colectivo, sem receio de arriscar conceitos novos.
Começaram em São Paulo, estiveram em Barcelona e desde há um ano estão fixados em Lisboa, embora circulando por essa Europa fora. Esse trânsito tem tido motivações pessoais ou artísticas?
DENNY AZEVEDO – As duas. Conhecemo-nos e começámos a namorar em 2012, em São Paulo, e um ano depois começou a surgir a ideia para um projecto unindo festa, música e artes visuais, que era de onde vínhamos. Rapidamente tudo isso virou movimento cultural da noite paulistana. Depois começámos a trabalhar a nossa música, as festas popularizaram-se e a partir de 2014 exportámos esses eventos para a Europa. Barcelona era a base, mas circulávamos por outros países, e foi aí que conhecemos Lisboa em 2016 e ficámos apaixonados pela cidade, tendo decidido vir para cá logo que fosse possível, movidos por um grande fascínio e também por essa possibilidade de interagir culturalmente com as pessoas daqui.
Não foi o vosso caso, mas depois da ascensão ao poder do Governo de Bolsonaro muitos artistas decidiram partir para a Europa, ficando a pairar, no entanto, a dúvida, junto de alguns deles, se não faria mais sentido ficar e resistir. Como é por vocês vivido esse possível conflito?
D.A. – Há sentimentos contraditórios, claro. Ao mesmo tempo que sentimos alívio, também sentimos saudade. É desafiador fazer acontecer o movimento aqui, mas nunca nos esquecemos do Brasil, da família, das pessoas que amamos e também da imensidão que é aquele país. Politicamente vivem-se tempos conturbados, mas, ao mesmo tempo, artisticamente, é bonito ver toda a expressão activa da negritude, do universo trans e queer, ou as mulheres ocupando os seus lugares de fala. Há uma reacção revitalizante. Há ataques de poderes que hoje comungam no Brasil de maneira muito vulgar, mas por outro lado tem essa resposta dos artistas que vão sendo censurados – filmes, teatro, exposições – mesmo quando estão fazendo os seus espectáculos em palco e vem a polícia e os manda sair. Então, essa situação sombria do Brasil, é preciso olhar para ela também a partir dos lados positivos. Muito do que trazemos para a Europa é esse recado: de como o brasileiro não é um povo que sofre e se lamenta apenas. Bem pelo contrário. A gente está aqui para aprender e ensinar. Hoje, com toda essa globalização, e com todas as diásporas, o mais interessante são as trocas culturais.
Partilham com a geração tropicalista dos anos 1960-70, de quem já assumiram influências, o gosto pela mistura, mas também uma visão crítica do poder. Na altura, para a geração de Caetano Veloso, Gilberto Gil ou Tom Zé, o contexto era a ditadura militar. Agora é outro.
D.A. – Exactamente. A vitalidade cultural brasileira vem muito da mistura, das colagens, das sobreposições, da reunião de influências do mundo que se juntaram ali. Há 100 anos, quando nasce o modernismo brasileiro, ao nível das artes e literatura, eles já falavam da antropofagia e em vez de reproduzirem o que a Europa fazia, pensaram numa arte global, que olhava para a Europa e para os outros lugares do mundo, sim, mas que tinha uma raiz deglutida e transformada a partir da influência brasileira. O tropicalismo também bebe dessa mesma fonte do modernismo e nós somos filhos dessa estirpe. O tropicalismo nos influencia muito. Foi uma altura de repressões políticas e os artistas se juntaram e, hoje, de forma diferente, é isso que também está acontecendo. Enquanto artistas, não queremos ser apenas o cantor ou o performer, mas essa multiplicidade de agir com visual, música e experiência. A inspiração vem daí também.
Como foi recebida inicialmente a vossa música no Brasil, tendo em atenção que mesclam electrónicas com ritmos de músicas de rua que, por vezes, são desvalorizadas ou até estigmatizadas pelas doutrinas dominantes como ainda acontece, por exemplo, com o baile funk?
D.A. – Primeiro criámos o nosso público, seja no Brasil ou na Europa. Isso criou uma certa cama. Quando apareceu a nossa música já falávamos directamente para esse público que estava aberto para não seguir apenas o modismo, capaz de compreender expressões contemporâneas, mas também raízes antigas, dos cânticos indígenas ou das referências africanas. E não só. O nosso olhar foi sempre global. Olhar como diferentes expressões podem coabitar. Dessa forma nunca sentimos estigma, mas já nos estávamos direccionando para um público especifico. Somos filhos da efervescência cultural de São Paulo, ajudámos a construi-la há sete anos com outros colectivos. Mas essa vanguarda vai acontecendo em bolhas. A contrapartida são as reacções conservadoras instaladas na sociedade. Há sempre esse aspecto duplo, que foi o que aconteceu na época do tropicalismo quando os artistas faziam todas aquelas músicas de teor político. Agora o Brasil volta a viver de novo isso, esse tipo de resposta. O baile funk, ainda hoje, apesar de já ser do domínio comum, ainda é percepcionado como um problema.
RICARDO DON – É marginalizado. Tem problemas de medo. Há pouco tempo, um baile funk foi invadido por policiais de maneira estratégica e houve morte de pessoas. O samba há décadas atrás também foi marginalizado dessa forma. O mesmo com o rap brasileiro – que tem uma métrica e estética que foge à lógica americana. Vem das inspirações americanas, mas se define como um ritmo brasileiro. O Brasil é um país muito rico, de grande riqueza folclórica e cultural. Tudo o que chega ali se transforma em algo essencialmente brasileiro. É uma característica. A gente se apropria mesmo das formas de fazer e é por isso que quando lançámos o primeiro EP havia uma música que interrogava qual o futuro do nosso folclore. Como é que as pessoas vão observar o que já passou? Os cânticos antigos de trabalho, por exemplo. Toda uma série de experiências que no mundo digitalizado se podem perder. A nossa luta é actualizar isso, não deixar que as referencias folclóricas se percam do imaginário das pessoas e também assimilar novas referências.
Os últimos anos foram muito marcados por movimentos que têm posto em causa o patriarcado, o racismo ou o capitalismo, em parte a partir das discussões ambientalistas. A reactividade que falava atrás é uma consequência dessa maior visibilidade de todas essas lutas?
R.D. – Claro. Tudo o que é novo causa medo. As massas acabam por imergir nesse medo, seja ele incutido por políticos ou por pessoas que tentam manter o que é dominante e que foi integrado como sendo o natural, como o sistema patriarcal instaurado ao longo da história.
D.A. – Mas ainda que existam muitas reacções, eu vejo muitos de nós – principalmente no Ocidente – com um pensamento de maior tolerância, tentando olhar para as coisas de maneira diferente, não reproduzindo o patriarcado sem entender o que significa e como pode ser diferente.
R.D. – Não somos contra nada, a não ser o medo, mas sim a favor de haver espaço para todos, com liberdade e igualdade. É esse caminho que a gente busca. É a possibilidade de se expressar sem medo de ser colhido com o racismo. É sair pelo mundo e gritar que estamos vivas e mais prontas que nunca para levar a palavra do amor, da liberdade, do hedonismo, de cada um encontrar o seu lugar no mundo. Se você se coloca numa posição em que só é vítima, vai ter sempre predadores à volta. Mais do que nunca é preciso se posicionar e acreditar no que você veio aqui fazer no mundo, com força, garra, determinação. Sem querer ser igual a alguém ou a alguma coisa. Cada um é o que é. É isso que faz a diversidade do mundo e torna a vida tão maravilhosa. Se todo o mundo é igual, as coisas perdem a graça e viramos tipo esses países que são considerados política e economicamente perfeitos, mas que têm altos índices de suicídio, porque ninguém aguenta o tédio.
Lançaram agora um novo disco, Seres Híbridos, que iniciaram ainda no Brasil. Como olham para ele no contexto do vosso percurso? É um bom reflexo do lugar em que se situam musicalmente neste momento?
R.D. – O primeiro EP foi muito a experiência do que é que a gente poderia fazer em termos de criar musica. Era novidade. E o tema era justamente trazer o que a gente já falava nas artes visuais e nas festas – a identidade festiva, o folclore brasileiro, essas possibilidades. O novo EP foi mais um passo no sentido de explorar possibilidades vocais com grupos de instrumentistas, explorando ainda mais essa fusão entre ritmos brasileiros e as linguagens electrónicas, que é uma característica nossa, porque vimos da pista de dança. É essa mescla entre ritmos e letras que falam de forma poética e folclórica de factos actuais sobre a intolerância e o momento no Brasil e no mundo. Temas como Caboclo presidente ou Mama falam do cenário político actual, e Cura é sobre a questão da homofobia e das terapias de reorientação sexual. Ao mesmo tempo, trazemos o nosso mundo lúdico. É um trabalho que concluiu uma fase do nosso percurso, decorrente da situação brasileira, mas andamos sempre à procura, até por esta vivência portuguesa e com o resto da Europa. O nosso próximo passo será trabalhar todas essas novas influências.
D.A. – Temos descoberto aqui coisas incríveis. O António Variações é uma referência-chave. Gostámos muito desse último disco da Lena d’Água também. Quando chegámos aqui, toda a gente falava do Conan Osiris e fomos pesquisar, entender a linguagem e temos estado atentos a essas pessoas que estão trabalhando influências novas como o Fado Bicha que traz uma visão queer do fado que é muito enriquecedora.
E o que vai acontecer no MusicBox, na festa de passagem de ano?
R.D. – O MusicBox tem sido uma experiência interessante, porque tem sido o nosso palco experimental, é onde temos desenvolvido novas ideias e possibilidades para a noite lisboeta. Aqui o movimento queer estava muito apagado e tímido, então a gente quer continuar nesse conceito de trazer a performance, criando uma noite experiencial, em que as pessoas são desafiadas a entrar no espírito, por causa dos visuais, da decoração e dos trajes surrealistas, criando essa mistura entre algo de absurdo e extravagante. E aí as pessoas vão ser estimuladas pela música dançante com referências de várias partes do mundo, mas de herança tropical calorosa. É isso que prometemos. E, claro, mais algumas surpresas.