Broken United Kingdom
No meio de todas as mentiras de Boris Johnson, que fazem com que o seu nariz seja visto do outro lado da Mancha, num ponto ele tinha razão: era preciso respeitar o voto do referendo.
A vitória esmagadora do nacionalismo identitário nas eleições britânicas é mais um sério aviso às democracias liberais e à União Europeia.
A campanha de Boris polarizou a Grã-Bretanha, rachando não apenas o eleitorado, mas o Reino Unido.
Os ingleses votaram massivamente no “cumprir com o ‘Brexit'”, enquanto na Escócia e na Irlanda do Norte o resultado foi bem diferente. Na Escócia, uma maioria esmagadora elegeu 48 deputados do Partido Nacional Escocês pró-europeu, num total de 59 (os Conservadores elegeram apenas seis); no País de Gales, os trabalhistas ainda foram o partido mais votado; na Irlanda do Norte os partidos favoráveis à reunificação com a República da Irlanda tiveram, pela primeira vez, mais eleitos do que os unionistas. O que confirmam as eleições na Grã-Bretanha é que os nacionalistas não são consensuais e polarizam, gravemente, as sociedades.
A estratégia dos populistas foi explorar as inquietações da velha classe operária inglesa com a precariedade dos seus empregos, a ameaça da automatização, a crescente desigualdade social, as diferenças de qualidade de vida nos grandes centros urbanos e no resto do país. Os filmes de Ken Loach, como Eu, Daniel Blake! ou Passamos por Cá, mostram bem a degradação da proteção social britânica, que já foi um modelo para o mundo. Não é por acaso que, a par do “Brexit”, a questão mais debatida nas eleições tenha sido o sistema de saúde, numa altura em que a esperança de vida diminui no Reino Unido. Porém, os populistas não exploram só fraturas reais, abrem novas ao dividirem “autóctones” de “estrangeiros”, ao diabolizarem os migrantes.
A quota-parte de responsabilidade de democratas liberais na polarização também deve ser reconhecida, ao desprezarem o voto dos eleitores que cedem perante o populismo, vistos como uns alienados, deplorables, como afirmou Hillary Clinton.
Para um social-democrata é extremamente difícil aceitar que o Partido Conservador, campeão do Thatcherismo, responsável desde 2010 por uma devastadora política de austeridade, apareça como o partido antissistema. Mas fê-lo ao transformar-se no “partido do ‘Brexit'” — os populistas ganham por convencerem os eleitores que confiam no seu voto.
Os eleitores ingleses quiseram confirmar o resultado do seu voto no referendo, que temiam estar a ser-lhes roubado. No meio de todas as mentiras de Boris Johnson, que fazem com que o seu nariz seja visto do outro lado da Mancha, num ponto ele tinha razão: era preciso respeitar o voto do referendo.
Não, os referendos não são a melhor maneira de dirimir questões de natureza constitucional, mas caso tenham lugar devem ser respeitados, sob pena de, como se viu, o preço a pagar ser muito elevado.
Para reverter o “Brexit” nestas eleições era necessário que os líderes europeus tivessem compreendido o aviso que vinha da Inglaterra, o que implicava um regresso ao consenso fundador da União Europeia, entre sociais-democratas e democratas cristãos, de uma Europa da liberdade e da justiça social, mas agora menos vanguardista e mais cidadã.
Aliás, os trabalhistas críticos do euroceticismo de Corbyn defendiam ser possível “Another Europe”, mais protetora da justiça social. Para tentarem convencer Corbyn estudaram o exemplo português, como fez Hilary Wainwright, do sucesso da frente parlamentar de esquerda e da reversão de algumas das políticas de austeridade.
Ainda é tempo de salvar a União. Os partidos democráticos europeus têm de se concentrar nos verdadeiros problemas que afetam a União Europeia e não cair nas armadilhas ideológicas da extrema-direita. Como fizeram recentemente no Parlamento Europeu ao aprovarem uma moção que equiparava Comunismo a Nazismo, uma aberrante aceitação da estratégia da extrema-direita, como se vê na Polónia, na Hungria, no Brasil ou no Reino Unido, onde Corbyn foi abusivamente identificado com Estaline.
A União Europeia irá enfrentar uma negociação difícil com um triunfalista e oportunista, Boris Johnson, para um acordo com a Grã-Bretanha que não pode ser só de comércio, mas terá de ter uma forte componente de proteção de direitos adquiridos, nomeadamente os que os 65 milhões de cidadãos britânicos gozam hoje na União. Não basta proteger e mal, como faz o acordo de separação, os direitos dos migrantes europeus no Reino Unido e dos britânicos na União Europeia, que perdem a liberdade de circulação. Um estatuto europeu de cidadãos associados para os britânicos que o desejem seria mais um fator de divisão dos britânicos — o estatuto deve ser para todos.
Mais difícil ainda, terá de responder a um muito provável referendo na Escócia, talvez unilateral, que decida que os escoceses querem continuar plenamente integrados na União Europeia.
É colocando no centro da discussão os direitos dos cidadãos, é mostrando que a União reconhece o fundamento de muitas das suas queixas, e combatendo, ao mesmo tempo, a xenofobia e o racismo, que se poderá travar o crescimento da extrema-direita e, a prazo, reverter o “Brexit”.
Fundador do Fórum Demos