Quem guarda os guardas
Todos os juízes sabem que a exigência a que estão sujeitos é muito maior que aquela que podem impor aos outros.
Há anos, um juiz brasileiro fez-me uma pergunta desconcertante: quantos juízes corruptos estão presos em Portugal? – Nem presos nem condenados, nenhum; respondi. O que para ele parecia ser uma contingência normal e inevitável, para mim, só de pensar nisso, era uma vergonha.
Já houve juízes condenados por crimes económicos, mas não por corrupção na função judicial. Em 2014, uma juíza que comprou uma casa e um carro com dinheiro ilícito do ex-marido, vice-reitor da Universidade Independente, foi condenada a três anos de prisão suspensa, por branqueamento de capitais. Em 2016, uma juíza desembargadora que usou dinheiro da Cruz Vermelha para pagar a juristas que lhe escreveram acórdãos foi condenada a dois anos de prisão suspensa, por peculato. Acabaram ambas expulsas da carreira, no lote dos 31 juízes demitidos e aposentados compulsivamente pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) desde 2002 (O corporativismo dos juízes, 19/6/2019).
Recentemente, por factos que poderão não andar longe da corrupção, o CSM aplicou também penas de demissão e aposentação compulsiva a mais dois juízes desembargadores: Rui Rangel e Fátima Galante. Há quem duvide da possibilidade de aplicar penas disciplinares expulsivas por factos ainda não definitivamente provados no processo-crime. Não avanço nesta polémica porque tudo indica que vai haver recurso e que a questão será decidida nos tribunais. De todo o modo, a interpretação que o CSM fez do artigo 83.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), segundo o qual “o procedimento disciplinar é independente do procedimento criminal”, não é nova e tem apoio jurisprudencial. Aliás, ainda há pouco tempo o Supremo Tribunal de Justiça absolveu um juiz que tinha sido condenado em primeira instância por violência doméstica, que já tinha sido aposentado compulsivamente antes da decisão final. Aqui está outro caso em que o CSM decidiu a questão disciplinar autonomamente da questão criminal.
Como o artigo 170.º, n.º 1, do EMJ diz que “a interposição de recurso não suspende a eficácia do acto recorrido, salvo quando, a requerimento do interessado, se considere que a execução imediata do acto é susceptível de causar ao recorrente prejuízo irreparável ou de difícil reparação”, uma pena disciplinar de expulsão pode ser imediatamente executada. Portanto, em tese, pode acontecer que no final do processo-crime haja uma absolvição cujos efeitos se devam repercutir na pena disciplinar. Se isso ocorrer, a lei tem mecanismos de reposição de direitos e compensação de prejuízos para remediar o efeito da execução imediata da pena disciplinar.
A decisão do CSM, de não esperar anos e anos pelo desfecho do processo-crime, foi tomada para preservar o valor fundamental da confiança na integridade dos juízes que administram a Justiça. Independentemente da legítima discussão jurídica sobre as subtilezas da interpretação da lei, para qualquer pessoa que olhe para as coisas à luz dos critérios da normalidade e razoabilidade parece inconcebível que um juiz sobre o qual recaiam fundadas suspeitas de actos de extrema gravidade, que o tornem inequivocamente inapto para o exercício da função, possa continuar a julgar nos tribunais. Se for válido o princípio de que aquilo que a todos parece absurdo não pode estar certo, então o sistema tem de ter soluções que afastem o absurdo e harmonizem de forma proporcional todos os interesses em conflito.
O Compromisso Ético aprovado pelos juízes em 2008 diz que “a confiança pública nos juízes garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa”. Por isso, não só pelo que está na lei mas também pelos valores que se comprometeram a prosseguir, todos os juízes sabem que a exigência a que estão sujeitos é muito maior que aquela que podem impor aos outros.
Juvenal, o poeta e retórico romano, perguntou nas Sátiras: – quem guarda os guardas? Pois bem, para que os guardas possam guardar-se a si próprios, é preciso que mostrem que se sabem guardar. Não há outra maneira.