Castração química ou racionalidade castrada?
André Ventura sabe que o proposto nunca pode ser aprovado e, se o fosse, o Tribunal Constitucional lá estaria para não permitir tamanha monstruosidade. Fá-lo então porque pretende ganhar voto fácil, apelando ao sentimento mais básico de qualquer ser humano, que é a natural repulsa perante estes horrendos crimes.
Cumprindo uma das mais emblemáticas medidas do seu programa eleitoral, André Ventura deu entrada no Parlamento, a 6/12, do projecto de lei n.º 144/XIV/1.ª, que deve se lido por todos e sujeito a um amplo debate.
Pretende o político que Portugal se junte a países como a Indonésia, Rússia, Polónia, alguns Estados dos EUA, como o Alabama, onde se impõe como pena acessória – ao lado da principal, de prisão –, de aplicação obrigatória, a castração química, que define como “a forma temporária de castração, suportada pela indução de medicamentos hormonais e medicamentos inibidores da libido, aplicada em estabelecimento médico devidamente autorizado e credenciado para o efeito”, sempre que haja reincidência ou o contexto dos crimes seja “de especial perversidade ou censurabilidade”, sujeito a um conjunto de exemplos-padrão como sucede hoje com o homicídio qualificado. Propõe a sua aplicação aos crimes de abuso sexual de criança e de menores dependentes.
Ainda da leitura do preâmbulo é patente que Ventura parece ignorar a existência, no nosso ordenamento jurídico-penal, de medidas de segurança baseadas na perigosidade do agente e que, cumpridos certos requisitos, podem fazer com que alguém passe o resto da vida em estabelecimento adequado se essa perigosidade se mantiver.
Este projecto é totalmente inconstitucional, de aplicabilidade prática duvidosa e configura um monumental retrocesso civilizacional, patente na paupérrima exposição de motivos, para o que bastará ver as referências quase nulas, retirada de blogs, em termos de literatura científica. Estamos conversados sobre a preocupação científica de Ventura.
Uma das consequências deste primarismo é a excessiva e caricatural simplificação da realidade. O deputado não pode ignorar a profunda discórdia existente na comunidade médica sobre o tema.
Não sou médico nem psicólogo, mas uma rápida pesquisa permite aceder a textos científicos como o de Joo Yong Lee/Kang, no Journal of Korean Medical Science (2013, 28(2): 171–172), intitulado The role of central and peripheral hormones in sexual and violent recidivism in sex offenders, onde se lê que “uma clara relação causa-efeito entre os níveis de testosterona e as ofensas sexuais permanece incerta” (veja-se, também Kingston et al., no Journal of American Psychiatry Law, 2012; 40(4): 476-85), onde também se lê que a castração, por si só, é insuficiente e deve ser acompanhada por meios psicológicos. Acresce que o que vem proposto tem como efeitos secundários osteoporose, doenças cardiovasculares, dificuldades no metabolismo da glicose e dos lípidos, depressão, infertilidade e anemia. E estamos a falar de tratamentos que duram entre três a cinco anos, o que faz aumentar os efeitos secundários.
O que agora se propõe é materialmente inconstitucional, por violar o art. 25.º, n.º 2: “ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos” e o art. 30.º, n.º 1, ambos da Constituição: “não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida” (em que se pode traduzir a castração). Viola ainda uma série de instrumentos internacionais a que estamos vinculados: p. ex., o art. 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o art. 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e o art. 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Não há dúvida que uma solução como esta, a que tecnicamente chamamos na teoria dos fins das penas de “inocuização”, priva o condenado dos seus direitos fundamentais, fazendo-nos recuar para a noite medieval para onde Ventura parece desejar voltar, mal-grado começar a exposição de princípios do projecto de lei com uma inusitada referência ao Iluminismo.
E pergunta-se ainda: o que entende o deputado por “reincidir” para efeitos do seu projecto? O que está preceituado nos artigos 75.º e 76.º do Código Penal? E basta um mero acto anterior para se inibir alguém de parte do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade humana, como é a vida sexual?
O discurso populista é o mais fácil e estou em crer que Ventura conhece a Constituição e que bem sabe que o proposto nunca pode ser aprovado e se, por absurdo, o fosse, o Tribunal Constitucional lá estaria para não permitir tamanha monstruosidade. Fá-lo então porque pretende ganhar voto fácil, apelando ao sentimento mais básico de qualquer ser humano, que é a natural repulsa perante estes horrendos crimes.
Porém, é essencial que a matéria criminal seja pensada sempre com muita informação científica – coisa que Ventura parece querer ignorar – e com uma adequada ponderação de interesses. Todos condenamos os crimes sexuais contra menores. Agora, num Estado de Direito democrático não vale tudo para combater o delito. Ventura quer que Portugal se aproxime do perigoso conceito de Jakobs do “Direito Penal do inimigo” e trata estes ofensores sexuais como animais, na senda daquele penalista alemão. São por demais conhecidas as objecções dogmáticas, práticas, filosóficas a conceitos como este.
Contra o obscurantismo de um populismo primário, tenhamos a ciência e a Razão, a argumentação ponderada, o rule of law, porque o discurso fácil de Ventura é uma espécie de receita de gelatina a que basta juntar água. Tomara que a realidade fosse assim tão simples! Ou Ventura acha que é um ungido divino que vê o que ninguém vê, que pela primeira vez pensa a sério (?) sobre as questões penais e que a intransigente defesa dos direitos fundamentais que o processo penal deve garantir é uma espécie de luxo? Ou para ele será antes lixo?