Procurador defende castração química para agressores sexuais em Portugal

Celso Leal, magistrado do Ministério Público, escreveu "o primeiro estudo jurídico" sobre a castração química em Portugal. Pressupostos: ser reversível e ter o acordo dos visados. Ordens dos Advogados e dos Médicos não comentam um tema que não tem estado na agenda. Especialistas reflectem sobre eficácia.

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A castração química tem como objectivo o controlo do desejo sexual do agressor Sibila Lind

Já tem sido discutido e está previsto em vários países, como o Reino Unido ou a Suécia. Mas em Portugal ainda não houve uma proposta legislativa específica para o implementar. Agora, o método da castração química é sugerido por Celso Leal, procurador do Ministério Público, num livro que acaba de chegar ao mercado e promete gerar polémica: Crimes Sexuais e Castração Química no Ordenamento Jurídico Português – Fim de um Tabu? (Nova Causa). “Em Portugal ninguém pegou nesta matéria no âmbito jurídico”, garante o próprio em entrevista ao PÚBLICO.

Pela primeira vez introduzida na lei como punição para agressores sexuais no estado da Califórnia (EUA) em 1996, a castração química não está prevista na lei em Portugal. Celso Leal, 41 anos, magistrado há 12 anos, defende que a castração aos agressores sexuais seja aplicada de forma reversível e sempre com o consentimento informado — ou seja, não pode ser compulsiva. “Nunca poderia ser imposta, pois isso seria inconstitucional.” A sua aplicação deve ser para autores de qualquer crime sexual, independentemente da idade da vítima.

O lançamento do livro — a 23 de Fevereiro, no Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa, e a 2 de Março, na Biblioteca da Universidade Portucalense, no Porto — vem anunciado no site do Ministério Público (MP). Mas o MP demarca-se do seu conteúdo, referindo que no seu portal são divulgados eventos, como o lançamento de obras de carácter jurídico, que "têm objectivo meramente informativo”.

A verdade é que a castração química levanta várias questões éticas e jurídicas, algumas das quais o procurador tenta responder no livro. Celso Leal propõe que em Portugal poderia substituir a pena de prisão ou ser condição para a liberdade condicional, com duração a definir pelo legislador e independentemente do período a que o agressor se submete a tratamento. “Não me parece que seja necessário uma revolução no sistema penal”, refere.

Em 2003, ainda chegou a ser abordada no Parlamento português no âmbito de propostas de prevenção de crimes sexuais, mas foi recusada por todos os grandes partidos. Em 2009, o Movimento Mérito e Sociedade (MMS) voltou ao tema: foi de novo recusado pelos partidos.

Este método é uma forma de castração temporária, feita com medicamentos hormonais para reduzir a libido, e “é considerada reversível” depois de se pararem os tratamentos. “Envolve a administração de drogas bloqueadoras de andrógenos, tais como acetato de ciproterona ou medicamentos de controlo de natalidade.” O que provoca "é a redução do desejo sexual, das fantasias sexuais compulsivas e da capacidade de excitação sexual”, descreve.

O grande argumento de Celso Leal é que se trata de um método mais eficaz do que a prisão. Projectos como a lista de pedófilos, que existem desde 2015 em Portugal, revelaram-se ineficazes, diz. Se a castação química fosse aplicada seria “um desenvolvimento civilizacional”, defende convictamente. Por causa do seu efeito dissuasor e pelo potencial que esta “pena/tratamento tem ao fazer com que o cidadão possa voltar a viver em sociedade, perfeitamente integrado, reduzindo substancialmente o risco de o mesmo voltar a infringir as regras no âmbito dos crimes desta natureza”, argumenta.

O tratamento não pode ser feito como acto isolado, ou seja, não se pode administrar a droga e “abandonar a pessoa”, vinca o magistrado, que chama ao agressor sexual “um doente”. “A castração química é um caminho.” Outro requisito: a definição de um tempo preciso para a sua aplicação.

Descreve Celso Leal que o doente sente um impulso, por isso é sujeito a castração química, para ficar mais controlado. Diminui-se a dose até chegar ao ponto em que deixa de ser necessário tomá-la. “Existe algum preconceito em relação a isto. A palavra castração em si, neste contexto, quer dizer que a pessoa deixa de ter relação sexual, não lhe é amputado nenhum órgão e é reversível. Que é o que se pretende com as penas.” O verdadeiro tratamento é o psiquiátrico, a castração é apenas o início, responde aos que criticam a proposta.

Reincidência e eficácia

A verdade é que não há unanimidade nas investigações sobre a eficácia — isso reconhece o próprio procurador. Não será então prematuro apresentá-lo como proposta legislativa em Portugal? “Não há nenhum estudo realizado para provar a eficácia que tenha chegado à conclusão que não é eficaz”, responde.

Há efeitos secundários na castração química, consoante a sua intensidade e duração: desenvolvimento das glândulas mamárias, problemas nos ossos, comportamentos violentos por estar a ser sujeito ao tratamento são apenas alguns. “Sendo um tratamento hormonal tem efeitos adversos. Um deles provoca impotência momentânea, e é isso que queremos. O outro é a perda da densidade óssea” — que se pode colmatar com medicação, refere Celso Leal. 

Na proposta do procurador, quem avalia o visado terá que ser um psiquiatra, e é ele quem irá definir se a pessoa tem ou não um comportamento patológico ou um desvio que não consegue controlar. “Só assim se pode sujeitar a tratamento.”

Há ainda casos reportados de quem estava sujeito aos tratamentos ter tomado medicação para ter o efeito contrário (como Viagra), mas o procurador considera que isso seria controlado com as análises clínicas e avaliações periódicas e também com uma legislação que preveja penas para incumprimento. Quanto a críticas de que pode ser considerado um tratamento desumano, Celso Leal recusa, pois refere que o consentimento do visado afasta essa hipótese, e está em conformidade com os tratados internacionais sobre direitos humanos a que Portugal aderiu.

Celso Leal está à espera que o livro seja polémico. “Existe muita desinformação. Estamos a falar de um medicamento que é reversível, sem consequências adversas para o futuro.” E comenta: “Se houver uma pessoa que deixa de cometer um crime sexual por causa disto já ficarei feliz. Porque essa pessoa pode ter 50 vítimas.”

Peritos discordam

Mas como é que a hipótese de existir castração química na lei seria recebida em Portugal? Contactadas pelo PÚBLICO, tanto a Ordem dos Médicos como a dos Advogados não quiseram comentar uma matéria que não está em discussão pública.

Este não é um tema que tenha ocupado a classe dos juristas, contextualiza Luísa Neto, professora da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e autora da tese de doutoramento O direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo – a relevância da vontade na configuração do regime. Não sendo absolutamente claro do ponto de vista científico, o conceito de castração química, mesmo com consentimento do visado, coloca questões éticas e jurídicas. Numa leitura mais tradicional do Direito levantar-se-ão dúvidas sobre “se o próprio pode consentir em actos que correspondem a uma renúncia ou autolimitação dos seus direitos". E refere: "Haverá quem defenda que não.” Depois, alguns entendem que se trata de um método terapêutico, o que levanta um outro problema: “Em Portugal não temos uma lei que diga o que é um acto médico.”

Mesmo em termos médicos e terapêuticos é um método polémico, segundo peritos ouvidos pelo PÚBLICO. Por exemplo, Rui Abrunhosa Gonçalves, psicólogo da Universidade do Minho que faz intervenção terapêutica a agressores sexuais enviados pelos tribunais, é “completamente contra”. Porque a castração química inibe a produção de testosterona mas não inibe “as fantasias e cognições”, diz. “O problema dos agressores não está da cintura para baixo mas da cintura para cima”, refere.

Além disso, pode ter como efeitos secundários alterações no funcionamento de outros órgãos do corpo ou até repercussões no funcionamento cardíaco, por exemplo. Outro problema que se levanta: os indivíduos perdem a erecção mas podem tornar-se ainda mais enraivecidos. “Temos que trabalhar sobretudo a questão psicológica. Até podemos usar medicação para controlar os impulsos, mas é importante não alterar o funcionamento da sua sexualidade”, diz.

Ricardo Barroso, professor de Psicologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, especialista em violência sexual, não se surpreende com o facto de a proposta aparecer em Portugal, depois de alguns países a terem na sua legislação. Na prática, este tratamento tem sido pouco usado porque precisa “da autorização e tem tantos efeitos secundários que levanta questões do ponto de vista ético”, refere. “Muitos médicos acabam por pôr em causa a sua utilização mesmo com a concordância do indivíduo.” Isto porque a castração resolve o problema do pescoço para baixo, mas “o abuso pode continuar a existir, mesmo sem penetração”. Por isso, é “muito mais importante” a obrigatoriedade da intervenção psicoterapêutica estar vertida na lei, mesmo que em conjunto com a medicação.

Do ponto de vista médico, o tratamento implica um conjunto de alterações hormonais significativas. O especialista considera, por isso, que as decisões de o introduzir têm sido “mais políticas” do que ligadas a “uma eventual eficácia clínico-terapêutica”. E desmistifica a ideia de que há mais reincidência nos crimes sexuais: “Os dados mostram que são mais baixos do que a média em geral” — apontam para 15 a 20% de reincidência nos crimes em geral e entre cinco a 10% nos crimes sexuais. Francisco Allen Gomes, psiquiatra e fundador da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC), também o sublinha — as reincidências nos crimes sexuais são muito mais baixas.

O sexólogo explica que em termos de eficácia a castração química é rápida a actuar e, por isso, “numa situação de urgência, será uma terapêutica a ter em consideração”. Mas é preciso perceber que “dentro do grupo da agressão há uma polimorfia muito grande” e “não se pode fazer uma terapia biológica indiscriminada”.

A vantagem de usar a castração química seria a cessação temporária da agressão, de dar tempo a uma intervenção médica para o agressor aprender a controlar os seus impulsos, a manejar as suas fantasias e a perceber a gravidade dos seus actos, refere. Porém, "o ideal é haver uma estrutura terapêutica na qual estejam os tratamentos anti-hormonais que são administrados consoante a gravidade da parafilia e do controlo do impulso dessa pessoa e uma terapia cognitivo-comportamental”.

Quanto a ser uma alternativa à prisão, o autor de Sexualidade Traída – Abuso Sexual Infantil e Pedofilia sublinha: "A experiência diz-nos que a medida mais eficaz para a agressão sexual é a prisão.”

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