O Gajo e uma viola campaniça, um ano de viagem apresentado no Ferroviário

Em 2017, João Morais, punk-rocker nos Corrosão Caótica ou nos Gazua, surpeendeu-nos. Trocou a guitarra eléctrica pela viola campaniça e cruzou tradição com a sua biografia musical. Este ano, editou um EP por cada estação do ano e mostrou como é cada mais segura a viagem a que se entregou. 4 Estações é apresentado este sábado no Clube Ferroviário, em Lisboa

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A apresentação de 4 Estações terá dose dupla, primeiro às 19h, depois às 22h DR

O nome é simples e mais directo não podia ser. O Gajo. Assim se reconverteu João Morais, de forma surpreendente para quem lhe acompanhava o percurso punk rock. Nas últimas décadas vimo-lo em palco a suar o punk-metal dos Corrosão Caótica ou a agitar-se ao sabor da electricidade dos Gazua. Em 2017, chegou uma surpresa intitulada Longe do Chão. Um homem entregue ao som aberto de uma viola campaniça, cordofone tradicional alentejano. Um álbum de estreia, assinado O Gajo. O que seguiu foram, este ano, quatro EPs, quatro viagens com partida de quatro estações (Rossio, Santa Apolónia, Cais do Sodré, Alcântara – Terra), que serão apresentados este sábado em dois concertos, o primeiro às 19h, o segundo às 22h, no Clube Ferroviário, em Lisboa.

“São pontos de partida, daí serem todos estações de Lisboa, a cidade onde nasci e cresci”, explica João Morais ao PÚBLICO. “É desta cidade que parto para o mundo. É um ponto de partida que deixa em aberto os destinos de chegada”. De facto. Com a viola campaniça como guia, com o bombo a marcar o ritmo em tom grave e a pandeireta a acentuá-lo, O Gajo utiliza o instrumento tradicional alentejano como veículo expressivo que carrega em si as raízes da sua origem. Utiliza-o, porém, como forma de se acrescentar a si, ao seu passado e às suas inspirações do presente, na música que agora cria. E, assim, sobressai o interesse na música magrebina num tema como Zandinga, de Santa Apolónia, e podemos ouvir um espírito rock’n’roll no coração de Bailão e Pedro Cigano, de Rossio. “Não me interessava fazer música tradicional portuguesa. Isso já está feito. Tentei fazer a minha leitura, o som desta viola portuguesa com as inspirações que são as minhas”. Mas adiantamo-nos.

Este sábado, O Gajo subirá duas vezes ao palco da sala TGV do Ferroviário para apresentar o peculiar projecto que o ocupou em 2019. Coincidindo com cada uma das estações do ano, editou quatro EP de cinco temas — reuniu-se a sugestão das Quatro Estações de Vivaldi com a ideia de viagem sugerida pelas estações ferroviárias. À partida, entusiasmou-o o conceito e o desafio que colocava a si mesmo. Obra completa, desabafa entre risos: “Agora, sei que não fazia outra tão cedo. Quis cumprir calendários e apressar a minha agilidade criativa não é uma coisa que ache muito saudável”, explica, enquanto nos fala de um ano passado totalmente sob a influência dos EPs que foi preparando enquanto o Inverno se transformava em Primavera, esta em Verão, este em Outono. “Cria muita ansiedade e, ainda por cima, não é um trabalho que possa tirar da cabeça às seis da tarde. Segue comigo para todo o lado e o meu contexto, seja familiar, seja o das amizades, fica contaminado por uma nuvem negra”. Mal acaba de utilizar esta última expressão, apressa-se a corrigir. “Bem, a nuvem não foi sempre negra. Agora que tudo acabou, sinto que consegui criar música que me orgulha muito, com os convidados que tive”.

De facto, nem sinais de nuvens negras e depressivas no horizonte enquanto avançamos tema a tema, estação a estação, enquanto ouvimos esta música acolher o violoncelo de Joana Guerra, o piano de Karlos Rotsen ou a voz declamada de José Anjos (todos eles marcarão presença nos concertos de apresentação, a par Carlos Barretto no contrabaixo e de João Sousa na percussão). Se o álbum de estreia, Longe do Chão era, como define João Morais, “o início do voo”, As 4 Estações surgem como espaço em que a viagem se torna mais livre e mais segura de si, como se músico e instrumento abraçado se conhecessem cada vez mais intimamente e percebessem exactamente como caminhar em conjunto.

Numa guerra com a viola

A história de João Morais com a viola campaniça nasceu de um encontro feliz. Em Beja para um concerto com os Gazua, cruza-se com Paulo Colaço, mestre no instrumento. Nessa altura, já João Morais procurava. “As minhas referências ao longo dos anos iam-se alterando e chegou a um ponto em que a música que fazia não representava aquela que eu ouvia. Senti que tinha alterar a minha orientação musical”. Tinha em casa uma guitarra portuguesa, modelo de Lisboa, mas o seu braço pequeno e fino e a dinâmica do som não lhe permitia extrair dela exactamente o pretendia. “Mantive as minhas antenas ligadas e, quando chego a Beja me cruzo com o Paulo Colaço e com a viola campaniça…”.

Quando se cruza com ele e com a viola, tudo se encaixou. “Tem uma dimensão ideal para ter corpo sonoro forte, tem um braço mais largo que é próximo do violão clássico. Encontrei-a um bocado por sorte, mas é ideal para o que pretendia”. O seu objectivo passava por procurar algo que representasse o espírito do seu lugar. “Cada zona tem as suas particularidades. Associamos a cítara à Índia, os alaúdes ao Médio Oriente e ao Norte de África. Eu procurei o que poderia ser particular ao meu país”. Com a campaniça, explora esse território comum a que chamamos tradição e deixa-se contaminar pela sua própria biografia, a sua história individual. “É muito mais enriquecedor ligar tudo o que ouvi desde criança, incorporando as novas referências num espectro de composição muito alargado. Podemos ouvir uma coisa que nos aproxima do fado ou da música tradicional e depois algo mais metaleiro. A minha postura, de resto, não se alterou. Podia estar na minha banda punk, acontece que agora estou sozinho em palco com a viola campaniça”.

Este sábado, vamos então vê-lo. O Gajo que escolheu quatro estações, não como ponto de chegada, mas como origem da viagem. O músico que, sozinho em palco, entregue ao som da viola campaniça, sente agora mais intensidade do que quando a electricidade rock estrepitava a toda a volta. “Pode parecer um contra-senso, mas estou metido numa espécie de bola de fogo, estou numa guerra com a viola. Sinto estes concertos com mais intensidade do que sentia com as bandas, porque antes a distorção criava essa intensidade, mas o nosso corpo podia estar relaxado enquanto se fazia uma grande barulheira”. Agora, não há refúgio possível. “Tenho que me agarrar à viola com mais unhas e dentes e tenho a energia toda concentrada em mim. Canso-me mais mas, no final, saio com uma sensação de objectivo maior atingido. Sinto-me mais completo e mais livre”. Assim o veremos amanhã, no final de cada um dos concertos. Depois, bem, depois será tempo de partir novamente.

Diz-nos que, depois da pressão vivida este ano para compor e registar os quatro EP, vai impor-se um descanso criativo de três meses. É certo, porém, que a jornada continuará. Em breve serão anunciados novos concertos para Janeiro de 2020. Comboio em andamento, O Gajo seguirá viagem.

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