Desvendados segredos de manequins usados há 400 anos por médicos
Equipa de cientistas dos Estados Unidos analisou 22 pequenos manequins de marfim que eram utilizados por médicos no século XVII.
Misteriosos. Esta é a palavra que mais tem caracterizado pequenos manequins de marfim que eram usados por médicos há 400 anos. Uma equipa de cientistas da Universidade de Duke (nos Estados Unidos) – que tem a maior colecção destes manequins da América do Norte – não se contentou com essa definição e quis saber mais sobre eles. Ao usar a técnica de microtomografia, concluiu que quase todas as figuras eram feitas apenas por marfim. Os resultados foram apresentados no último encontro da Sociedade de Radiologia da América do Norte.
Estes manequins têm entre dez e 20 centímetros e existem 180 em todo o mundo. Alguns estão num pedestal e outros permanecem reclinados e de olhos fechados numa cama com uma almofada. Todos têm órgãos removíveis e, no caso das mulheres, até têm fetos com um cordão umbilical. A maioria destas figuras representa mulheres.
Através de certas características como o penteado, alguns historiadores pensam que devem ter sido fabricados na Alemanha entre o final do século XVII e o início do século XVIII, nomeadamente no atelier do alemão Stephan Zick, que era conhecido por fazer modelos em marfim de orelhas e globos oculares de humanos.
Pensa-se que seriam usados para estudar anatomia ou até como instrumento de ensino para a gravidez ou o parto. “Já se pensou que estes modelos de marfim fossem usados como uma ferramenta para os médicos explicarem o parto às grávidas. Este cenário não faz sentido”, afirmou ao site da Universidade de Duke a historiadora de arte Cali Buckley, que fez um doutoramento sobre estas figuras. Como estes manequins foram fabricados numa altura em que os médicos começaram a explorar mais a anatomia feminina e o parto – um tema até então dominado por parteiras –, a historiadora considera que teriam sido utilizados por médicos para mostrar os conhecimentos sobre o corpo feminino aos seus colegas.
O Museu da Farmácia, em Lisboa, tem uma destas peças – e está exposta –, nomeadamente de uma mulher grávida. “[Servia] para estudo de uma mulher grávida, com braços articulados e o torso removível para observação dos seus órgãos internos, incluindo um feto: a mulher de expressão sorridente, está deitada num leito sumptuoso de cor violeta, com almofada em marfim”, lê-se na descrição do museu, que atribui este objecto a Stephan Zick.
Por volta do século XVIII, estes manequins começaram a ser substituídos por ferramentas de ensino mais realísticas, como modelos de cera e cadáveres. A partir de então, tornaram-se peças de luxo de colecções privadas.
A colecção da Universidade de Duke é exemplo disso. A maioria das figuras desta colecção foi comprada entre os anos de 1930 e 1940 pelo cirurgião e historiador de medicina Josiah Trent e pela sua mulher Mary Duke Trent, que era política e filantropa. Esta colecção acabou por ser doada pelos netos do casal à universidade em 1956.
Desde então, estavam grande parte do tempo no depósito da biblioteca a 18 graus Celsius e com 45% de humidade. “Normalmente, estavam guardados no depósito da biblioteca e ocasionalmente iam para uma unidade de exposição especial da Biblioteca de Medicina de Duke para que pudessem ser vistos”, refere Fides Schwarts, investigadora do Departamento de Radiologia da Universidade de Duke, num comunicado da Sociedade de Radiologia da América do Norte.
A equipa de Fides Schwarts tem analisado as 22 figuras de marfim da Universidade de Duke através da microtomografia, uma técnica que aumenta a resolução da imagem e permite visualizar características da microestrutura dos objectos. Desta forma, pôde saber-se de que tipo de marfim eram feitos os manequins. “Esta técnica permite-nos distinguir marfim ‘verdadeiro’ obtido de elefantes e mamutes de marfim ‘de imitação’ como o dos chifres de veado e o dos ossos de baleia”, explica Fides Schwarts.
Marfim de África
Ao analisar os 22 manequins com microtomografia, percebeu-se que 20 são feitos apenas de marfim “verdadeiro” (cuja comercialização foi proibida em 1989). Os dois restantes são compostos por chifre de veado ou por uma mistura de marfim e osso de baleia, materiais baratos na altura.
Também se observou que quatro figuras têm componentes metálicas para juntar as peças e que dois deles possuem fibras. “Nãos sabemos mesmo quando é que estas componentes foram introduzidas, mas é muito possível que tenham sido quando os manequins foram fabricados”, sublinha ao PÚBLICO Fides Schwarts. Doze das figuras têm ainda dobradiças ou outras reparações no interior.
Como a maioria das rotas comerciais de marfim do século XVII e XVIII eram em África, o que leva os investigadores a supor que o material dos manequins tenha assim vindo do continente africano. Agora, a história deverá entrar neste trabalho através do estudo das rotas comerciais do marfim de elefante da Alemanha no século XVII e XVIII. Assim, poderá conhecer-se melhor qual a região alemã e o período em concreto que estas peças foram fabricadas.
Para Fides Schwarts, este estudo mostrou ainda a importância da microtomografia: “Com estes resultados percebemos que esta técnica pode ajudar nas descobertas arqueológicas.”
A equipa já começou a digitalizar imagens destes manequins, mas espera também conseguir imprimir modelos a três dimensões. Pretende ainda divulgar online e de forma gratuita os resultados desta análise. “Digitalizar e imprimir estes objectos dará aos visitantes um maior acesso e oportunidade para interagir com estes manequins, assim como permitir a investigadores aprender mais sobre a sua história”, diz a cientista, que está prestes a publicar um artigo científico sobre a análise a estes enigmáticos figuras de marfim.