Recordando um período negro da justiça portuguesa
A mudança a que se refere José Gil leva-nos ao modo como o ex-procurador da República Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento lidaram com o processo Freeport e Face Oculta.
Comentando o processo Operação Marquês na estação de rádio Antena I, o filósofo José Gil qualificou a acusação do Ministério Público como “um acontecimento histórico e uma vitória da democracia”. Segundo José Gil, “qualquer que seja o resultado do processo, podemos já afirmar que este acontecimento marca uma viragem decisiva e única na história do funcionamento judicial do Estado português”, acrescentando que “até aqui, o Estado assentava numa série de fenómenos que influenciavam os seus mecanismos como a corrupção e a promiscuidade entre o poder político e económico, tudo isto em total impunidade e silêncio. Porém, a acusação do referido processo marca o fim deste ciclo. O referido autor acrescenta ainda que tudo isto se deverá à “mudança de todo um staff na Procuradoria-Geral da República, “desde Joana Marques Vidal ao juiz Carlos Alexandre, que são de uma integridade e de uma transparência totais”.”Não será o fim da corrupção, mas é emblemático”, acrescenta. (cf. CM - 13.10.I7)
Cita-se esta análise de José Gil, por se me afigurar que corresponde ao sentimento da maioria do povo português, porquanto respeitando embora a presunção de inocência de todos os arguidos, a matéria já conhecida revela uma tremenda violação dos princípios mais elementares da ética e lealdade no exercício da atividade política, económica e social, que tem como limite não só a lei, mas também a ética como regra subsidiária.
A mudança a que se refere José Gil leva-nos ao modo como o ex-procurador da República Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento lidaram com o processo Freeport e Face Oculta. Os portugueses estão ainda recordados que o processo Freeport foi arquivado precocemente, sem que tenha sido ouvido o principal suspeito, José Sócrates, o que levou o autor do despacho de arquivamento a registar as perguntas que deveriam ser colocadas ao então primeiro-ministro, já que tinha sido dado aos procuradores responsáveis pela investigação um prazo “perentório” (sem possibilidade de prorrogação) para terminar o inquérito. Esse registo de perguntas foi entendido pela comunidade jurídica como um meio que os procuradores responsáveis do processo encontraram para mostrarem a sua discordância pelo modo abrupto como foram “obrigados” a terminar o inquérito. Ora, uma vez que o inquérito ficou incompleto e perante factos supervenientes conhecidos, seria oportuno proceder à sua reabertura, nos termos do artigo 279 do Código do Processo Penal.
Relativamente a Noronha do Nascimento, a comunicação social encarregou-se de traçar o perfil deste “personagem”. Oportunamente, o jornalista José Manuel Fernandes, no editorial do PÚBLICO, de 29.09.06, qualificou-o de “estratega da aranha”, por, além do mais, tecer uma teia de favores que o levariam a presidente do STJ e CSM. A sua má conduta nos cargos que exerceu foi também zurzida pelo ex-bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto. Se o leitor se der à tarefa de fazer uma simples pesquisa pela Internet verá a dimensão e a gravidade das acusações.
Assim, a sua conduta ficará na história da justiça portuguesa pelas piores razões, como, por exemplo, pelo modo enviesado e lamentável como ascendeu a presidente da STJ e da CSM; pela coautoria com Lázaro Faria na fraude eleitoral para presidente da Relação de Guimarães na altura da sua criação; pela destruição das escutas telefónicas no processo Face Oculta, assumindo a exclusividade da decisão (sem recurso). Noronha do Nascimento, com a sua conduta, causou graves danos na imagem da magistratura e da justiça que levará anos a restaurar.
Do exposto, é fácil verificar a razão pela qual, José Gil qualificou a acusação do Ministério Público no processo Operação Marquês como “um acontecimento histórico e uma vitória da democracia”, marcando o fim de um ciclo, com a “mudança de todo um ‘staff' na Procuradoria Geral da República, desde Joana Marques Vidal ao juiz Carlos Alexandre”.
No passado dia 10 de novembro, uma missão da UE veio ao nosso país para verificar como Portugal tenciona pôr em prática o pacote da transparência e da luta contra a corrupção, aprovado em junho de 2019, que regula também as incompatibilidades dos deputados. A UE pretende saber, nomeadamente, como Portugal vai combater a corrupção na administração pública, em particular, ao nível dos contratos públicos. A aludida missão pretende saber ainda quais os recursos financeiros que serão alocados ao Ministério Público e que tipo de ajuda lhe pretende dar para continuar o combate à corrupção, que não para de subir. Mas, praticamente, nada foi feito pelos poderes políticos (Governo e AR) nesta luta.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico