Projecto de Lei da Nacionalidade do Livre pode violar princípio da igualdade

Constitucionalistas consideram que a proposta cria regimes distintos para quem nasceu em épocas diferentes, o que pode ser inconstitucional. Projecto do Livre vai ser discutido juntamente com os do BE, PCP e PAN.

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JOacine Katar Moreira não quis explicar o regime diferenciado da sua proposta LUSA/TIAGO PETINGA

O projecto apresentado pelo Livre para alterar a Lei da Nacionalidade pode conter uma violação ao princípio constitucional da igualdade, devido à criação de um regime diferenciado para os cidadãos nascidos entre 1981 e 2006. A opinião é de dois constitucionalistas ouvidos pelo PÚBLICO, Tiago Duarte e Mariana Melo Egídio.

Joacine Katar Moreira, autora do projecto que vai ser discutido juntamente com os do BE, PCP e PAN, defende numa das suas propostas de alteração às condições de atribuição da nacionalidade originária que esta possa ser atribuída aos “indivíduos nascidos entre 1981 e 2006 no território português, filhos de estrangeiros que declarem que querem ser portugueses”.

Para Tiago Duarte, professor de Direito Constitucional na Universidade Católica, e Mariana Melo Egídio, assistente convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde tem leccionado a mesma disciplina, a questão problemática desta norma não se coloca na sua retroactividade. “A Constituição apenas estabelece a não retroactividade das normas restritivas de direitos e não das normas que conferem direitos, como é aqui o caso”, afirma Tiago Duarte, recordando que a versão de 2015 desta mesma lei já permitia atribuir a nacionalidade a netos de portugueses nascidos no estrangeiro, mesmo que tivessem nascido antes da entrada em vigor da lei.

“Acontece que nessa Lei orgânica 9/2015 essa aplicação retroactiva estava bem clara no art. 2.º da Lei e isso agora não está claro neste projecto de lei”, sublinha o constitucionalista. E isso cria um problema: é que é reconhecida a nacionalidade originária a quem nasceu em Portugal (ius solis) entre 1981 e 2006, mas o mesmo regime deixa de fora quem nasceu depois de 2006 e antes da entrada em vigor das novas regras.

“Se for assim, pode haver uma inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, por se passar a discriminar os indivíduos nascidos em Portugal, filhos de estrangeiros, antes de 1981 ou após 2006 e até à entrada em vigor desta alteração legislativa. Com efeito, esses indivíduos não poderiam obter a nacionalidade originária nem pela alínea e) nem pela f), o que não parece ter qualquer critério”, sustenta Tiago Duarte.

No mesmo sentido, Mariana Melo Egídio também aponta como negativa “a falta de justificação para criar um regime diferenciado para os indivíduos nascidos entre 1981 e 2006 no território português” por manifestação de vontade. “A aplicação retroactiva da lei, estando a criar um regime aquisitivo de direitos para uma certa categoria de pessoas, poderá ser inconstitucional, não relativamente à criação deste direito retroactivamente, mas antes pela situação de desigualdade que poderá gerar com outros indivíduos, também eles filhos de estrangeiros mas nascidos em período temporal distinto”, defende. ​

O PÚBLICO perguntou a Joacine Katar Moreira se queria explicar a decisão de criar um regime especial para os nascidos entre 1981 e 2006, mas a resposta que obteve é que a deputada única do Livre prefere aguardar pela discussão do projecto no Parlamento, e não estar a discuti-lo na comunicação social.

O projecto do Livre foi admitido na quinta-feira, “a título excepcional”, pelo presidente da Assembleia da República para ser debatido juntamente com os de BE, PCP e PAN em 11 de Dezembro. De acordo como a Lusa, o presidente da Assembleia da República promoveu um consenso parlamentar nesse sentido, depois de ter contactado as sete bancadas com assento na conferência de líderes e ter obtido a sua concordância para ultrapassar o impasse gerado na terça-feira. Isto porque o projecto de lei do Livre foi entregue nesse dia, mas fora do prazo informalmente acordado entre os diversos partidos na legislatura anterior, uma espécie de “acordo de cavalheiros” à margem do regimento da Assembleia da República do qual não tinha sido dado conhecimento a Katar Moreira.

Consagrar o ius soli

Todas as outras propostas apresentadas têm uma coisa em comum com a do Livre: a consagração do ius soli em detrimento dos condicionalismos hoje colocados a quem nasce em Portugal. Mas nenhum outro contém a mesma questão de regimes diferenciados.

O projecto do Bloco, o primeiro a ser apresentado, pretende a atribuição da nacionalidade a todas as pessoas nascidas em Portugal a partir de 1981, terminando com as exigências de um dos progenitores ter aqui nascido e aqui ter residência ao tempo do nascimento da criança. O problema é resolvido revogando a actual alínea e) do número um do art.º 1.º da Lei da Nacionalidade e propondo na alínea f) que seja atribuída a nacionalidade aos “indivíduos nascidos em território português, filhos de estrangeiros que não se encontrem ao serviço do respectivo Estado”. A formulação desta alínea é, aliás, igual à do Livre.

Já o PCP prefere manter a exigência de um dos progenitores residir em Portugal, “independentemente do título”. “Faz todo o sentido considerar portugueses de origem todos os indivíduos, filhos de cidadãos não nacionais, nascidos em Portugal, desde que esse nascimento não tenha sido meramente ocasional numa passagem por Portugal de pessoas que nem cá residam nem cá querem residir, ou que cá tenham vindo com o único propósito de obtenção da nacionalidade portuguesa por mera conveniência, não tendo nem pretendendo ter qualquer outra relação com a comunidade nacional”, lê-se no preâmbulo do projecto.

Por seu lado, o PAN aborda a questão de modo diferente. Considerando que a lei em vigor tem já “um dos modelos mais favoráveis do mundo para aquisição da nacionalidade”, o PAN centra-se apenas na tentativa de “correcção de uma injustiça” relativa aos cidadãos, “nomeadamente afrodescendentes”, nascidos em território nacional entre 1974 e antes da entrada em vigor da lei de 1981 (que já foi alterada diversas vezes, a última das quais no ano passado).

Isto porque, em Junho de 1974, um decreto-lei determinou a perda da nacionalidade para os indivíduos nascidos ou domiciliados nas ex-colónias, “sem que se tivesse tido em conta as suas motivações e ligações efectivas com Portugal”. O PAN propõe apenas que se atribua a naturalização (e não nacionalidade originária, que atribui um leque mais amplo de direitos) a todas as pessoas nascidas em território português após o 25 de Abril, ou seja, estendendo para trás a actual lei.

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