Polémica na escolha de Elizabeth Bishop como autora homenageada da FLIP 2020
Na raiz da contestação estão as opiniões da poetisa norte-americana sobre o golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil, em 1964, e sobre a poesia latino-americana. O timing da escolha não podia ser pior, dizem mais críticos. Até aqui a Festa Literária Internacional de Paraty nunca homenageou um escritor estrangeiro.
A escolha da norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979) como homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2020 está a gerar controvérsia devido ao apoio manifestado pela escritora ao golpe militar brasileiro de 1964.
“Não compreendo como a FLIP 2020, maior festa literária do Brasil, escolhe Elizabeth Bishop como homenageada-tema. No momento que o Brasil vive, é a mensagem oposta do que seria preciso. Uma poetisa estrangeira que morou no Brasil olhando-o do alto do seu horror às massas, que apoiou com alívio o golpe militar de 1964”, defende a escritora e jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho na rede social Facebook.
“Não ponho em questão Bishop como poeta, (...) que isso fique muito claro. Mas escolhê-la como figura da maior festa literária do país justamente quando o Brasil mais precisa de afirmar a potência, a beleza, a liberdade dos seus criadores, logo quando os nostálgicos da ditadura, agora no poder, ameaçam a criação diariamente, parece-me o maior tiro no pé. Insultuoso mesmo”, conclui a autora que viveu e trabalhou como correspondente do PÚBLICO no Brasil e acaba de lançar Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso (Caminho).
Elizabeth Bishop será a primeira autora estrangeira homenageada pela FLIP desde a sua criação, em 2003.
“Não é uma coincidência que Liz Calder, uma das forças criadoras da FLIP, tenha encerrado a edição deste ano com a leitura de um poema dela. Bishop está na nossa lista de possíveis autores homenageados há mais de dez anos”, informou o director artístico da festa, Mauro Munhoz, em comunicado.
Segundo Munhoz, a escritora norte-americana cumpre na perfeição a missão originária da homenagem, mais actual do que nunca em 2020: “Fazer a rica experiência da arte brasileira ser mais bem reconhecida em qualquer lugar do mundo.”
Porém, a opinião da direcção da FLIP não é partilhada por muitos autores brasileiros, que consideram que a norte-americana era uma forte crítica do Brasil e dos brasileiros. O poeta e ensaísta Antônio Carlos Secchin, da Academia Brasileira de Letras, destacou, segundo o jornal O Globo, que Bishop falava “mal de praticamente todos os brasileiros” e “reduziu a quase nada a poesia de Manuel Bandeira, além da de toda a América do Sul”.
“Tenho a hipótese de que não houve critério político nenhum para a escolha dela, mas não me pareceu a adequada, até pelo quadro político actual, em que sabemos que a cultura e a literatura não estão entre as prioridades, para dizer pouco”, afirmou o académico brasileiro.
Secchin frisou ainda ao Globo que nomes importantes da literatura brasileira, como João Cabral de Mello Neto, cujo centenário se comemora no próximo ano, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Murilo Mendes não foram ainda homenageados pela FLIP.
O escritor brasileiro Ronaldo Bressane usou o Facebook para realçar “a escolha infeliz” da autora norte-americana. “A extraordinária poesia de Bishop talvez não tenha nada a ver com o bispo da política. Mas que foi uma escolha infeliz, nada sagaz, num momento que é inteligência o que mais se espera de uma instituição como a FLIP. Uma chance perdida”, acrescentou.
Também através das redes sociais, o diplomata brasileiro Felipe Fortuna partilhou vários trechos de cartas, entrevistas e ensaios em que Bishop critica o Brasil, o seu povo e a qualidade dos seus escritores. “Manuel Bandeira [poeta brasileiro] é delicado e musical e tudo o mais — nada parece sólido ou realmente “criado” — é tudo pessoal e tendendo para o frívolo. Um bom poema de Dylan Thomas [poeta galês] vale mais do que toda a poesia sul-americana que já vi, com a excepção, possivelmente, de Pablo Neruda”, partilhou Fortuna, referindo-se a uma carta de Elizabeth Bishop ao poeta norte-americano Robert Lowell.
“No livro Brazil, editado pelo grupo Time-Life, Elizabeth Bishop afirma encontrar entre intelectuais do país um comportamento de Hamlet brasileiro, ‘incapaz de trabalho sério ou de acção, prolixo e fingindo loucura. (p.12)'”, escreveu o diplomata brasileiro.
Uma das frases mais partilhadas entre os críticos à escolha da poetisa norte-americana foi aquela em que Bishop, também numa carta a Lowell, comenta o golpe militar de 1964 no Brasil: “Foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva — tudo terminado em menos de 48 horas”.
Em 1951, Bishop aportou em Santos, no litoral do estado brasileiro de São Paulo, com a intenção de passar duas semanas no país, prazo que se estendeu por mais de duas décadas. A mudança de planos ocorreu porque a escritora viveu um longo relacionamento amoroso com a arquitecta e urbanista brasileira Lota de Macedo Soares (1910-1967). As duas apaixonaram-se quando se conheceram e viveram juntas até à morte de Soares, em Nova Iorque.
No Brasil, a poetisa norte-americana morou no estado do Rio de Janeiro e em Ouro Preto, Minas Gerais.