Derrotado nos tribunais, Trump apresenta-se como protector de futuros Presidentes
Juíza federal norte-americana decidiu que ninguém na Casa Branca pode recusar-se a cumprir intimações do Congresso para testemunhar. Decisão pode ter consequências para o processo de destituição do Presidente Trump e para a separação de poderes no país.
O processo lançado pelo Partido Democrata para afastar o Presidente Donald Trump da Casa Branca abriu também um confronto nos tribunais norte-americanos sobre os limites dos poderes executivo e legislativo. Na decisão mais recente, anunciada esta semana, uma juíza federal afirmou que nenhum alto funcionário da Casa Branca, nem mesmo o mais importante e mais próximo do Presidente, tem imunidade total para não cumprir as intimações do Congresso.
A decisão da juíza Ketanji Brown Jackson, do tribunal federal da capital norte-americana, era aguardada com expectativa tanto na Casa Branca como na liderança do Partido Democrata na Câmara dos Representantes, onde decorre a primeira fase do processo de impeachment contra o Presidente Trump.
Numa reacção no Twitter, o Presidente norte-americano disse que “gostaria muito” que toda a gente pudesse testemunhar perante o Congresso, mas não autoriza que isso aconteça porque está “a lutar por futuros Presidentes e pelo cargo de Presidente”.
“Gostaria que Mike Pompeo, Rick Perry, Mick Mulvaney e muitos outros testemunhassem neste embuste do impeachment”, disse Trump, referindo-se ao secretário de Estado, ao secretário da Energia e ao seu chefe de gabinete, todos proibidos pela Casa Branca de serem ouvidos nas audições das últimas semanas na Câmara dos Representantes. “É uma golpada do Partido Democrata que não vai a lado nenhum, mas os futuros Presidentes não podem ficar vulneráveis. O que me aconteceu não deve acontecer a outro Presidente.”
Ainda a interferência da Rússia
O caso apreciado pela juíza Jackson não está directamente relacionado com as audições dos últimos dois meses, onde se discutiu a pressão de Trump sobre o Presidente da Ucrânia para investigar Joe Biden e o Partido Democrata, mas pode ter implicações importantes para esse processo.
Em causa está uma ordem de Trump, anunciada em Maio, para que o antigo advogado principal da Casa Branca, Donald McGahn, rejeitasse uma intimação da Câmara dos Representantes para servir de testemunha num outro caso.
Por essa altura, o Partido Democrata tentava perceber se tinha argumentos para avançar com um processo de destituição contra Trump por causa das investigações sobre a propaganda russa nas eleições de 2016 nos EUA. Em particular, se Trump instruiu McGahn a despedir o procurador especial Robert Mueller e depois lhe pediu para dizer que isso era mentira.
O ex-advogado principal da Casa Branca, que abandonou o cargo em Outubro de 2018, poderia confirmar ou desmentir perante a Câmara dos Representantes, sob juramento, se aquela versão dos acontecimentos era verdadeira ou falsa – e, desse modo, fortalecer ou enfraquecer os argumentos do Partido Democrata para a abertura de um processo de destituição do Presidente norte-americano, por obstrução da Justiça, meses antes do que acabou por acontecer.
Como McGahn optou por cumprir a ordem da Casa Branca para não testemunhar, em vez de cumprir a intimação da Câmara dos Representantes, o caso passou para os tribunais.
"Presidentes não são reis"
Numa primeira decisão, a juíza Ketanji Brown Jackson arrasou o argumento principal da Casa Branca de que os funcionários mais próximos do Presidente – como era o caso de McGahn – têm imunidade total em relação às intimações do Congresso.
“Dito de uma forma simples, a principal conclusão sobre os 250 anos de História americana é a de que os Presidentes não são reis”, escreveu Jackson na sua decisão. “Isso significa que não têm súbditos vinculados por lealdade ou sangue, cujo destino podem controlar.”
Num texto em que cita a obra de George Orwell A Quinta dos Animais, para dizer que, segundo o ponto de vista da Casa Branca, “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros”, a juíza conclui: “A comparência obrigatória por força de uma intimação é uma construção legal, e não política, e de acordo com a Constituição ninguém está acima da lei.”
Mas a juíza deixou claro que a sua decisão não obriga nenhum funcionário da Casa Branca a responder às perguntas das comissões de inquérito do Congresso; apenas diz que todos eles têm a obrigação de comparecer na sequência de uma intimação. Uma vez lá, podem dizer que não querem responder sempre que lhes for colocada uma questão – e esse é um assunto para avaliar num outro possível caso nos tribunais.
O Departamento de Justiça já anunciou que vai recorrer em nome da Casa Branca, e o advogado de Donald McGahn disse que o seu cliente vai cumprir a decisão da juíza Jackson se o tribunal de recurso não a suspender entretanto.
A caminho do Supremo
A decisão é importante por duas razões. Em primeiro lugar, se for confirmada pelo tribunal de recurso, ou se não for suspensa até essa decisão ser conhecida, pode encorajar o Partido Democrata a questionar Donald McGahn a tempo de incluir uma nova acusação no processo de destituição em curso – nesse caso, Trump poderia vir a ser acusado também de obstrução da Justiça nas investigações sobre a interferência russa.
Por outro lado, pode também levar outros actuais e antigos funcionários da Casa Branca, que também cumpriram a ordem de silêncio da Casa Branca, a aceitarem ser ouvidos no Congresso, nas próximas semanas, no caso das pressões sobre a Ucrânia. Se isso acontecer, uma possível audição ao antigo conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, John Bolton, pode revelar-se importante – Bolton disse que só testemunhará se for obrigado pelos tribunais e já sugeriu que tem informações importantes para as investigações sobre a Ucrânia.
Se o caso chegar ao Supremo Tribunal, como é provável, é também a relação entre poderes que fica em causa. Até hoje, a oposição às intimações do Congresso nunca foi testada no Supremo, e o entendimento da Casa Branca é que os mais próximos do Presidente têm imunidade total. Foi isso que aconteceu em 1971, com o Presidente Richard Nixon, e mais recentemente com George W. Bush, em 2008, e com Barack Obama, em 2014.
Em todos os casos foi encontrada uma solução entre as duas partes que travou a interferência do Supremo, mesmo depois de, há dez anos, um tribunal de primeira instância ter tomado uma decisão contra a Administração Bush semelhante à que foi anunciada esta semana.
Esta semana, a juíza Ketanji Brown Jackson, nomeada pelo Presidente Barack Obama, indicou que a Constituição está do lado do Congresso no seu poder para forçar a audição de testemunhas, dizendo que “não é porque o poder executivo diz uma coisa há 50 anos que essa verdade fundamental se altera”. Mas esse pode não ser o entendimento dos dois juízes nomeados pelo Presidente Trump para o Supremo – tanto Neil Gorsuch como Brett Kavanaugh são conhecidos por defenderem a quase total independência do poder executivo em relação aos outros poderes.