A Orquestra de Câmara Portuguesa desafia a gravidade
Um concerto invulgar de uma orquestra capaz de grandes voos, como uma sinfonia de Mozart tocada com uma imensa coragem, intercalada com “comentários musicais” contemporâneos. Mas o segredo desta esplêndida tarde musical estava num vulgar balão azul.
Um balão azul suspenso por um fio a uma cadeira: era assim a imagem do cartaz deste concerto, que a Orquestra de Câmara Portuguesa (OCP) intitulou de “Grande pausa: uma reflexão suspensa”. A ideia era juntar peças aparentemente distantes à volta da ideia de “suspensão”. De certo modo, propunha-se uma reflexão acerca da força subversiva que pode haver na música e, mais concretamente, na insubmissão que se pode descobrir numa interrupção, numa pausa ou numa suspensão musical. A música a desafiar a gravidade, a descobrir caminhos novos em obras do passado mais longínquo ou mais recente. Para reactivar a aura de um concerto, onde se vê a música acontecendo...
O que era extremamente interessante na proposta da OCP é que a conjugação de obras de dois contemporâneos do século XVIII (de Joseph Martin Kraus e de Mozart) com peças de compositores nossos contemporâneos não era feita da forma mais habitual nas salas de concerto. Em vez da habitual “sanduíche” que entala uma peça actual no meio de duas sinfonias clássicas ou românticas (para sairmos tonalmente descansados), Pedro Carneiro e Teresa Simas conceberam um guião para um concerto que obrigava a uma encenação delicada e a um cruzamento de obras pensado noutros termos.
Não é que o concerto se tenha tornado teatro: a ideia era antes “pôr a música em cena” e sugerir ao público presente que se dê ao trabalho de pensar no que ouve, com ajuda de pequenos elementos cénicos (o balão azul, sempre ali desafiando-nos, suspenso), algumas movimentações simples da orquestra e a ajuda preciosa de algumas palavras ou pequenas frases que os próprios músicos diziam ou liam: “expectante”, “suspenso”, “insurreição”, “silêncio”... Poucas palavras, suspensas, desafiantes.
No intervalo, Pedro Carneiro lia a uma criança excertos de textos, incluindo momentos das extraordinárias conversas entre o músico e maestro Daniel Barenboim e o intelectual e ensaísta Edward W. Saïd (algumas delas do livro Parallels and Paradoxes: Explorations in Music and Society). Tudo isto ressoou depois na música (num magnífico recomeço com Mozart), deixando-a, apesar de tudo, livre de “explicações”. E foi particularmente bem conseguido, porque a orquestra tocou magnificamente as obras programadas e fez-nos realmente pensar e sentir — experipensar! — a força poderosa de uma certa forma de fazer música.
É isso o mais raro e o mais notável no trabalho de Pedro Carneiro como director musical da OCP e no trabalho de todos os músicos: não é apenas um empenho, uma “coragem” (no sentido em que a usa Barenboim quando diz que é o elemento fundamental no trabalho artístico, que passa por levar o mais longe possível uma ideia musical, sem concessões) — é a música feita com uma atitude de grande disciplina colectiva, mas não para se submeter a uma ordem autoritária nem a uma normalização comercial. Pelo contrário, o rigor máximo procura-se para chegar o mais longe possível, para corajosamente descobrir o lado mais insubmisso e ousado que a música pode revelar. Para partilhar num concerto a “curiosidade infindável da busca colectiva”, como leu Pedro Carneiro à criança na encenação “suspensa” do intervalo. Porque a partitura não é a obra. Obra é quando a fazemos mesmo soar.
Uma lição? Sim, uma lição que só se aprende a fazer, por exemplo na arriscada e corajosa velocidade do Presto “o mais rápido possível” da Sinfonia Haffner de Mozart, descobrindo pesos e estranhas levezas na Sinfonia Fúnebre de Joseph Kraus (e os músicos da orquestra até cantaram!), ou enfrentando o desafio no limiar do audível da obra de Lachenmann que abriu o concerto (Guero), com os músicos da orquestra parados, apenas balançando-se como se estivessem suspensos nos micro-sons arrancados ao piano. Ou ainda nos espectaculares solos de flauta (Rui Borges Maia para Itinerant de Toru Takemitsu), de clarinete baixo (Ana Maria Santos para Assonance II de Michael Jarrel) e de trompete (Óscar Carmo para Solus, de Stanley Friedman). Aqui a coragem é também do ouvinte, que tem de buscar o que foge ou o que falta, nos silêncios, nos desenhos suspensos ou nas ressonâncias “subtractivas” (trata-se de tirar mais do que de pôr, por exemplo na obra de Jarrel). Desafiando as leis da gravidade, como diria Barenboim. Para reinventar a alegria insubmissa que se celebra num concerto.