O lítio na senda dos eucaliptos
Claro que é natural que a União Europeia aplauda sermos nós a autoflagelarmo-nos e a ficarmos, ad aeternum, com as feridas profundas de tão oportuno investimento. É a mesma satisfação que demonstra perante o fornecimento do papel que asseguramos a diversos países europeus que assim não têm nem eucaliptos nem fábricas de celulose.
Desta vez é o lítio e, com ele, um discurso recorrente. O negócio afigura-se importante, Portugal tem condições que justificam um grande investimento. O “ouro” está de novo no interior e quando o processo chega ao terreno, a estratégia já está traçada. A polémica instala-se, os principais visados reagem. Enquanto o debate corre bem, os louros são do governo em exercício, quando começam a faltar argumentos para justificar o caminho entretanto percorrido, a culpa é do anterior, dos compromissos já assumidos.
Algo de semelhante se passou com outro “petróleo” que só diverge na cor. O de agora dizem que é branco, o dos eucaliptos e dos pinheiros-bravos (continua a ser) verde. Estes últimos tomaram conta do país, transformaram-se numa peste de difícil remoção e após várias décadas de desgraça continuam a ser defendidos porque continuam a render. A quem? A quem com estas monoculturas beneficia. Quem os lamenta, só pode ver os prejuízos e as calamidades de que são responsáveis para o erário público. De uma forma crescente e com consequências cada vez mais gravosas.
Voltemos ao lítio. A justificação desta nova fonte de infeção do nosso maltratado território é a descarbonização da economia. Algo aceitável se a exploração do lítio fosse defendida como componente comedida de uma abrangente e multifacetada transição energética nacional, obrigatória e responsável. O problema é a dimensão do que agora se defende. Diz-se que só é rentável investir se em muito grande escala num processo que envolva também a fileira industrial da refinação e do processamento do minério, um negócio tanto mais grave porque em muitos casos incide ou avizinha-se de parcelas do país que foram classificadas pelo valor do seu património natural. Mais uma vez. Porque, azar dos azares, sempre que se acena com uma nova forma de produzir energia, porque é mais limpa, porque é mais “verde”, invadem-se novos territórios sempre importantes para a conservação da natureza, para a biodiversidade, ou seja, para todos nós. Cada vez mais reduzidos e fragmentados e por isso vitais para a salvaguarda de populações de fauna, flora e seus “habitats”, nem sempre resistiram a investidas anteriores, como foram as centrais mini-hídricas e os parques eólicos. Abrir, por exemplo na região de Montalegre, grandes minas a céu aberto e as ditas unidades industriais é, neste contexto, intolerável.
Diz-se que o lítio vai desempenhar um papel crucial na economia global. Será? Quando e por quanto tempo? E por quem? Argumenta-se que um protecionismo europeu contra os gigantes mundiais, China, Austrália, América do Sul, garantirá o sucesso nacional nesta aposta. Não sejamos ingénuos. Os maiores defensores da exploração do lítio estimam que possamos deter, no melhor cenário, 0,5% das reservas mundiais!
Claro que é natural que a União Europeia aplauda sermos nós a autoflagelarmo-nos e a ficarmos, ad aeternum, com as feridas profundas de tão oportuno investimento. É a mesma satisfação que demonstra perante o fornecimento do papel que asseguramos a diversos países europeus que assim não têm nem eucaliptos nem fábricas de celulose.
Descarbonizar o país não se consegue apenas anulando a queima de combustíveis fósseis. Alcança-se reduzindo o desperdício, racionalizando a utilização de energia, mudando profundamente os hábitos de consumo.
E sequestrando carbono. Esquecendo todos os males que provocam, as monoculturas de pinheiro e eucalipto também o fariam, se não ardessem. E os incêndios em que se consomem devastadoramente ainda agravam mais as emissões que se pretendem reduzir ou controlar.
Tudo isto devia ser devidamente confrontado, avaliado, participado em discussões que nunca se fazem no tempo certo. As decisões são tomadas por quem, longe das consequências, aposta numa indústria que mais uma vez recorre a recursos do interior, que acabam por expulsar pessoas, destruir comunidades, aniquilar negócios sustentáveis e expectativas a gente jovem a quem constantemente se apela para que retorne a um território já consumido pelos eucaliptos e que agora se quer esventrar pelo lítio.
Mais grave. Situado na bacia do mediterrâneo, paredes meias com os desertos do norte de África, Portugal situa-se num olho de furacão. Devíamos estar seriamente preocupados com a salvaguarda de recursos vitais como é a água e não arranjarmos processos que mais a consomem e inquinam. Água que não se gera com a construção de mais barragens nos nossos desesperados rios mas sim com investimentos que a preservem, que promovam uma maior racionalidade do seu consumo. O regresso da floresta autóctone a Portugal é mais uma vez uma evidente e imperiosa tarefa e, como se vê, uma questão que tem tudo a ver com o lítio. Quanto mais (verdadeira) floresta restaurarmos, menos lítio será necessário.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico