Bater à porta do vizinho para comprar electricidade
Em São Luís, uma aldeia de Odemira, os vizinhos estão a juntar-se para produzir e partilhar energia com o objectivo de serem auto-suficientes. A nova legislação vem facilitar as comunidades de energia renovável e as produções colectivas.
A Junta de Freguesia de São Luís fica num alto e dali vê-se quase todo o casario da aldeia. É sobretudo um aglomerado branco e laranja, mas em alguns telhados a cor dominante é o azul escuro, quase preto, que nesta manhã nublada parece sobressair ainda mais na paisagem.
Os painéis fotovoltaicos que se avistam têm o estatuto de pioneiros nesta localidade do concelho de Odemira e surgiram com o intuito de se multiplicar e também de alargar os benefícios da energia solar para lá da factura da luz. Depois de alguns anos estagnado, esse projecto ganhou novo fôlego este ano e, com a nova legislação sobre comunidades de energia renovável, pode em 2020 dar um passo ainda maior.
Será que São Luís vai ser a primeira aldeia auto-suficiente em energia do país? Pelo que se vê nos telhados e se ouve nos cafés, ninguém diria. Mas o caminho faz-se caminhando, diz o presidente da junta. “Estamos a desbravar caminho. Somos uma freguesia que, embora pequena, tem preocupações ambientais grandes. São Luís quer estar na linha da frente das comunidades locais para criar uma sociedade mais sustentável”, declara Fernando Parreira.
Autarca há apenas dois anos, Parreira não pode colher os louros de ter sido no seu mandato que o projecto de instalar painéis fotovoltaicos nos telhados de entidades públicas e sociais da aldeia venceu o Orçamento Participativo da Câmara de Odemira. Foi em 2012. O financiamento municipal permitiu pôr painéis na Casa do Povo, na Sociedade Recreativa Sanluizense e num pequeno parque de estacionamento da junta.
O presidente não fica com o mérito mas recebe o benefício. “Isto dá-nos um retorno e permite abater os consumos internos”, diz. A ideia inicial, no entanto, era que esse dinheiro fosse reinvestido em projectos ambientais e locais, algo que ainda não aconteceu. “Ficou por concretizar mas eu quero fazer”, garante Fernando Parreira.
Vender energia ao vizinho
Com esse primeiro passo dado há sete anos, na aldeia começou-se a pensar em “ir além dos modelos individuais e familiares de autoconsumo e explorar as possibilidades de o fazer em comunidade”, explica André Vizinho, da Transição São Luís. Este grupo, que tem sido o principal impulsionador da ideia de fazer de São Luís uma aldeia auto-sustentável, dinamizou há uns meses a compra colectiva de alguns painéis solares com o apoio da Cooperativa Minga, sediada em Montemor-o-Novo, que também deu formação aos habitantes sobre energia solar.
“À medida que vêem as coisas a acontecer vão-se interessando”, diz André, sublinhando que “as pessoas estão abertas, mas daí a estarem pró-activas ainda vai um longo caminho”. Entre outras coisas, para aderirem à ideia de serem os produtores da própria energia que consomem, os moradores precisam de saber se o investimento inicial compensa.
É precisamente o que se discute à mesa de um café no mercado da aldeia. “Uma pessoa paga 30 euros de luz. Vai gastar mil e tal euros para deixar de pagar 30 e passar a pagar 25?”, questiona um homem. “Mas olhe que essa gente que agora paga 30 vai passar a pagar 50 quando a central de Sines [a carvão] fechar”, responde-lhe outro.
Neste momento, por via de um decreto-lei publicado em 2015, existe um modelo de autoconsumo em que qualquer pessoa pode produzir energia para si e obter descontos na factura da luz ou vender electricidade à rede. Um novo decreto-lei que entra em vigor em Janeiro, que resulta da transposição de uma directiva europeia, contempla já a existência de auto-consumidores colectivos e de comunidades de energia renovável (CER).
Vem, no fundo, dar enquadramento legal a uma realidade ainda residual – mas que se quer fazer crescer. “É uma oportunidade enorme para tornar os cidadãos mais próximos da sua produção energética”, diz Ana Rita Antunes, da Coopérnico, uma cooperativa de energias renováveis que recentemente se tornou também comercializadora de electricidade. “O modelo que foi construído nas últimas décadas assenta em produção centralizada e consumo descentralizado. Desta forma vamos conseguir trazer o cidadão para o centro do sector energético.”
Como? Com as CER e os auto-consumidores colectivos, a energia produzida em determinado local pode ser partilhada por todos quantos habitem nessa zona. “Posso vender o meu excedente ao vizinho do lado”, exemplifica Ana Rita Antunes.
Um manual de como fazer
Entre Setembro de 2018 e Agosto de 2019, a produção descentralizada de energia fotovoltaica atingiu os 231.979 megawatt hora (MWh), segundo o último boletim estatístico da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). De todas as energias renováveis, é de longe a que tem maior produção descentralizada e também a que tem mais capacidade instalada nessa modalidade. Foi igualmente, considerando as produções centralizadas e descentralizadas, “a tecnologia que mais cresceu” na capacidade instalada desde 2010, atingindo em Agosto os 784 MW. O Alentejo é, precisamente, a região do país com maior produção fotovoltaica.
Há motivos para acreditar que o crescimento vai acelerar. “O próximo ano vai ser muito importante”, diz Ana Rita Antunes, referindo a janela que agora se abre para os condomínios poderem tornar-se produtores. A Coopérnico está neste momento a acompanhar o caso-piloto de um condomínio de oito prédios em Lisboa que vai instalar painéis solares e baterias, um investimento que não está ao alcance de uma família sozinha. “Vão poder produzir energia, armazená-la e vendê-la”, sublinha.
No caso de São Luís, a aldeia pode gerar energia suficiente para si e ainda vender o restante. “Há aqui vários níveis de trabalho possíveis”, diz André Vizinho, referindo que o novo decreto-lei vai “tornar mais rentável o investimento em autoconsumo”. Já estão identificados os edifícios públicos e de instituições sociais que ainda podem receber painéis e está a ser estudado um modelo para ajudar financeiramente “as pessoas sem capacidade de fazer o investimento inicial”, explica. Além disso, está em cima da mesa a criação de um pequeno parque fotovoltaico numa antiga pedreira.
“Está tudo a borbulhar, mas ainda não há assim muitas comunidades a terem projectos concretizados”, comenta Fernando Parreira. E isso traz desafios que têm de ser resolvidos no dia-a-dia. “O passo seguinte são as soluções tecnológicas e a capacitação dos cidadãos”, diz Ana Rita Antunes. A Coopérnico quer “testar soluções técnicas” e depois criar “um manual sobre como implementar um sistema destes”, acessível a todos. “Há muitos telhados que não podem ser aproveitados no seu todo porque não têm a orientação solar certa ou porque têm muitas zonas de sombra”, exemplifica. “É para tudo isto que estamos a olhar.”
Há ainda respostas que estão por dar. Voltando ao exemplo do vizinho a quem vende energia, a dirigente da cooperativa comenta: “Se ele viver no meu prédio, tudo bem. Se ele viver numa vivenda ao lado ou noutro sítio do meu bairro, tenho de usar a rede eléctrica nacional para a energia lá chegar. O que a ERSE [Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos] tem de dizer até ao final do ano é quanto é que vou cobrar ao meu vizinho pela utilização da rede.”
Para o Transição São Luís colocam-se também outros desafios. O grupo é composto por voluntários e “há muito poucos investimentos para isto”, comenta André Vizinho, o que torna “bastante complexa a operacionalização no terreno”, dependente de ir convencendo os potenciais interessados um a um. “Há apoio. Para vencer o orçamento participativo foi preciso apoio. A maior parte das pessoas estão disponíveis para aderir”, acredita.