Vinte anos depois: consumir drogas ilegais (pode) ser crime
Enquanto as condenações por tráfico diminuíram no mesmo período, a percentagem relativa aos consumidores no total de condenados ao abrigo da lei da droga subiu de 16% em 2009 para 38% em 2017.
Celebra-se por estes dias os 20 anos da Estratégia Nacional da Luta Contra a Droga e, quando a questão é a regulação do uso de drogas ilegais, a política portuguesa é um bom exemplo de um movimento contra-hegemónico. Está em linha com a convicção de que a Guerra às Drogas fracassou. Mas Portugal não abandonou o paradigma proibicionista. E, ainda que ambicione inscrever o fenómeno no âmbito dos Direitos Humanos, fá-lo dentro das suas linhas mais conservadoras: aquelas informadas pelo direito ao tratamento não discriminatório perante a Justiça e ao acesso igualitário à Saúde. Apesar das suas virtudes, este tem sido um caminho feito de ambiguidades, hesitações e recuos, como aquele que, em 2008, recupera o crime de consumo.
Da ambiguidade, um exemplo – o Decreto-Lei nº 15/93 – que ainda vigora parcialmente e que, paternalmente, aconselha a que o consumidor se liberte da escravidão que o domina e que, mediante os incentivos adequados do tratamento médico, seja trazido de volta para o cortejo da vida útil, se possível feliz. Paradoxalmente, o regime penal do consumo, globalmente considerado, foi agravado. Além da aquisição e a posse para consumo, são também contemplados o consumo e o cultivo para consumo.
As penas de prisão até três meses mantêm-se, mas nos casos em que as quantidades apreendidas são superiores às necessárias para três dias - e aqui reside grande parte da novidade - a pena de prisão é estendida até um ano. Já as sanções relativas ao tráfico são suavizadas, seja através da redução ligeira das penas, seja pela introdução de categorias intermédias, como os crimes de “tráfico de menor gravidade” e de “tráfico/consumo”, ambos com penas mais suaves.
Em finais de 90, a vulnerabilidade dos consumidores de risco fazia tocar o alarme social e a mudança legislativa impunha-se. A transição para um paradigma mais compreensivo culmina na Lei nº 30/2000. A lei da descriminalização não está, porém, isenta de ambiguidades e é nas sanções penais que ela se tem mostrado mais controversa.
A nova lei veio revogar o ponto 2 do art.º 40º do decreto de 93, que estabelecia o crime de consumo, e distinguia entre consumo e tráfico, criminalizando as duas práticas. Mas – posto que fosse apurada aquela distinção – impedia já que o consumo fosse legalmente punido como tráfico. A lei da descriminalização, pelo contrário, estabelece quantidades máximas, mas não prevê sanções legais para aqueles que, sendo consumidores, detêm quantidades superiores. Daqui surge uma possibilidade desconcertante: o consumidor com quantidades inferiores às permitidas é sancionado, ainda que não criminalmente; outro consumidor, com quantidades que excedem o estabelecido, não sofreria qualquer sanção.
Visando esclarecer as incertezas abertas pela nova lei, o STJ vem, através do acórdão nº8/2008, tomar posição e, considerando que não se pretendia legalizar o consumo, mas apenas descriminalizar as situações menos graves, recupera o artigo que havia sido revogado e ressuscita o crime de consumo quando a quantidade detetada seja superior ao consumo médio individual durante um período de dez dias, sendo este comportamento punível com pena de prisão até um ano. De notar que estas sanções não são dirigidas a traficantes, nem tão pouco a consumidores-traficantes. Estamos sempre a falar de pessoas em que se deu como provado serem unicamente consumidores.
Portugal conta atualmente com um conjunto de pessoas sancionadas - algumas com pena de prisão - pelo crime de consumo. Em 2017, estas condenações haviam aumentado 128% relativamente a 2009. Enquanto as condenações por tráfico diminuíram no mesmo período, a percentagem relativa aos consumidores no total de condenados ao abrigo da lei da droga subiu de 16% em 2009 para 38% em 2017. A maioria foi condenada em multa efetiva. Mas também houve lugar a 58 condenações a pena de prisão (51 suspensas e sete efetivas), como já antes noticiado.
Resta questionar se estamos a investir na identificação dos consumidores, seja pela via penal, seja pela via da contraordenação, e a desinvestir no combate ao comércio de rua.
Essencialmente, a hesitação tende a surgir quando as propostas políticas se prendem com aspetos do foro do bem-estar das pessoas que usam drogas: da generalização dos serviços de drug checking, às salas de consumo assistido, passado pelo acesso a Naloxona ou a programas de troca de seringas em contexto prisional.
A hesitação reflete a tendência a ignorar que a saúde é um conceito amplo, que deve ir além da doença, ilustrando antes como o fenómeno droga está assimilado a qualquer coisa da esfera do patológico, quando sabemos que a esmagadora maioria das pessoas identificados como consumidores são consumidores não-problemáticos. O verdadeiro desafio parecer ser a promoção de um debate que coloque estas questões no âmbito mais vasto dos Direitos Humanos, favorecendo o respeito por princípios como a liberdade individual e o direito a uma escolha informada, já que a doença é obviamente um conceito pobre quando se trata de empoderar as pessoas que usam drogas.