Ambiente “tóxico” e “bélico” em torno do fenómeno da droga preocupa associações
Carta aberta escrita pela CASO e subscrita por várias associações e personalidades condena “narrativas puritanas e punitivas” sobre a droga e pede mais respeito pelos consumidores. E “respostas reais”
Com “enorme revolta, indignação e tristeza”, a Associação CASO diz estar a assistir ao “regresso de narrativas puritanas e punitivas” em torno do fenómeno da droga, discursos comuns no século XX e que “fizeram mais mal do que bem”. Por isso – e juntando o facto de Portugal ser considerado “um exemplo” no mundo por ter descriminalizado a posse e uso de substâncias psicoactivas para uso pessoal, mudando o “foco do crime para a saúde” –, a associação vem condenar o regresso da ideia da “guerra às drogas”. Isso, defende numa carta aberta, “mais não é do que um regresso a uma guerra às pessoas que usam SPA [substâncias psicoactivas] ilícitas, às suas famílias e amigos, e, até aos profissionais que trabalham de forma séria nesta área”.
O documento ao qual o PÚBLICO teve acesso – escrito por Rui Coimbra, Rui Salvador e Sérgio Rodrigues, da CASO - Consumidores Associados Sobrevivem Organizados – será debatido na sexta-feira, numa reunião aberta, na sede da associação, no Porto. Ainda antes de se tornar pública, a carta aberta tinha sido subscrita por sete entidades e 23 personalidades que trabalham na área - e estará disponível para quem se quiser juntar à mensagem. Depois do debate e de reunir mais apoios, o documento seguirá para a Assembleia da República, a Casa da Presidência da República, os Grupos Parlamentares, a Associação de Municípios e algumas autarquias.
“Rótulos e sobre-simplificações” como “o flagelo”, “o inferno”, “carregados de doenças”, “toxicodependente” ou “lixo tóxico”, remetem para “abordagens punitivas, repressivas e moralistas”, lê-se na carta aberta, que atira responsabilidade para várias entidades. “Alguns meios de comunicação social, políticos e mesmo alguns técnicos que trabalham com pessoas que usam SPA, em circunstâncias particularmente vulneráveis, insistem em espalhar desinformação e ignorância, fazendo uso de ‘manobras’ que, mais não fazem do que disseminar ‘alarme social’ e ‘pânico moral’”, aponta. Para a CASO, estas posturas “deveriam ser alvo de sanção” por significarem um ataque aos “mais frágeis”.
Pela instigação do “medo” e “insegurança”, lamenta, “manipula-se a percepção e as representações sociais negativas”. Mas são muitas as entidades que têm defendido um outro olhar: a “ideia de que a promoção da saúde passa pela promoção da qualidade de vida das pessoas e não pelo uso ‘tóxico’ de rótulos que diminuem pessoas que já estão fragilizadas, e, muito menos, pelo reforço securitário que agrave as condições de vida de quem se encontra já em situações de vulnerabilidade.”
A associação sublinha não ser possível “continuar a ignorar os factos, a ciência e os direitos humanos mais fundamentais” e apela à “empatia” e conhecimento. “Procurem a melhor informação e as melhores práticas, nomeadamente através de um verdadeiro diálogo estruturado e trabalho articulado com a sociedade civil, antes de agirem. Depois disto, e, em conjunto, que se procure um futuro modelo mais congruente e consolidado para que as repostas reais às necessidades reais sejam criadas.”
Não esquecendo os “esforços dos muitos e bons que têm mantido viva a esperança de um modelo português realmente real” - um plano “que não pareça uma coisa lá fora e outra cá dentro -, a CASO apela ao fim do “ambiente tóxico e bélico” vivido actualmente. E, sem nomear geografias, termina com uma ligação para as recentes declarações da Harm Reduction International, ONG com décadas de luta pela defesa dos direitos dos consumidores de drogas, que considerou as recentes declarações de Rui Moreira, defendendo uma criminalização do consumo em espaço público, “um significativo passo atrás na política de drogas de Portugal”. O PÚBLICO tentou ouvir a Câmara do Porto, mas, tal como havia feito em relação às declarações da Harm Reduction International, a autarquia preferiu não comentar.