Existe uma memória europeia?
Ao colocar em pé de igualdade nazismo e comunismo, a UE acaba por mascarar e diluir as diferenças radicais que existem entre os dois regimes.
A 19 de Setembro deste ano o Parlamento Europeu aprovou uma resolução intitulada “A importância da memória europeia para o futuro da Europa”. Nesta extensa resolução, e entre muitos outros itens, propõe-se a todos os Estados-membros a data de 25 de Maio para a comemoração anual dos heróis da luta contra o totalitarismo, no seguimento da proclamação, já anteriormente adoptada, do dia 23 de Agosto como Dia Europeu da Memória das Vítimas do Estalinismo e Nazismo.
Aparentemente trata-se de uma resolução mais do que justa: nazismo e comunismo foram efectivamente dois regimes totalitários que causaram milhões de vítimas e um intenso sofrimento na grande maioria dos povos europeus. Nada mais natural do que apelar a que todo este sofrimento não seja esquecido “para que estes crimes não se reproduzam”, como é referido. No entanto, ao colocar em pé de igualdade nazismo e comunismo, a UE acaba por mascarar e diluir as diferenças radicais que existem entre os dois regimes – e na consciência dos povos –, o que tem como consequência a construção de uma memória deturpada baseada em chavões e proclamações vãs.
Não pretendo com isto estabelecer critérios de valorização ou desvalorização. Não se trata de diferenciar os dois regimes em termos do “melhor” ou do menos mau, qual o que causou menos ou mais sofrimento. Trata-se sim do conhecimento e da compreensão da profunda diferença da história e da natureza dos dois regimes, dos seus objectivos e meios para os atingir, sem as quais “a concorrência das vítimas” continuará a existir apesar de todos os apelos e admoestações da União Europeia.
Tal como o nazismo, a ex-União Soviética estalinista perpetrou crimes hediondos contra as suas próprias populações e a sua influência nefasta teve consequências dramáticas em numerosos países, particularmente da Europa de Leste e Central. Sem dúvida alguma, o pacto germano-soviético Ribbentrop-Molotov de 1939 deixou as mãos livres a Hitler para desencadear uma guerra já programada. E também é verdade que a complacência e mesmo cumplicidade de partidos comunistas e de parte das elites ocidentais contribuíram para branquear durante décadas os crimes soviéticos. É pois necessário dar a conhecer em toda a sua latitude os crimes da ex-União Soviética.
Mas nada disto justifica a amálgama entre os dois regimes patente na resolução europeia. Nem sequer o número de mortos que, segundo os historiadores, terá sido muito maior causado pelo terror soviético, relativamente ao do nazismo. Mas por mais terrível que seja, a natureza de um regime não se define pelo número de vítimas, mas principalmente pelas suas intenções, objectivos e meios decorrentes.
O regime soviético, invocando o ideário marxista-leninista baseado na supressão de classes sociais e na ditadura do proletariado, no acesso de todos à educação, saúde e igualdade de sexos, ganhou uma parte significativa da sua população, o que permitiu transformar em profundidade as estruturas sociais e económicas do país, e simultaneamente arrasar, massacrar e eliminar tudo e todos os que se opunham aos seus desígnios. O Gulag foi assim o instrumento político mais eficaz para calar a dissidência política, mas não era o instrumento de extermínio programado como eram os campos de morte nazi. A fome e as deportações maciças da população ucraniana levadas a cabo pelo estalinismo, apesar da mortandade atroz que causaram, não tinham como fim o extermínio total dessa população. Eram motivadas politicamente e não por razões étnicas e raciais, como eram essencialmente as do nazismo, obcecado com a “pureza” da raça ariana do povo alemão, supostamente ameaçada em primeiro lugar pelos judeus, cujo destino previsto no projecto nazi era o genocídio na sua totalidade.
Ao longo desta última década, visitei alguns dos principais países do Leste europeu. Em todos eles, com destaque para a Hungria e os países bálticos, encontrei uma memória ainda a sangrar de meio século de ocupação soviética. Os seus museus oficiais reflectem amplamente essa memória dorida, o que é mais do que compreensível. No entanto, esses mesmos países foram também ocupados pelo nazismo e, embora por um período muito menor, também sofreram com essa ocupação. Apesar disso, na memória oficial escrita, musealizada e interiorizada, o pouco que consta é altamente controlado pelos poderes políticos. A razão é clara: a colaboração com os nazis foi decisiva no extermínio praticamente total de uma parte significativa da sua população. Nas valas comuns das florestas de Ponary, em Vilnius, de Rumbula e de Bikernieki, perto de Riga ou de Klooga em Tallinn, jazem as cinzas dos cerca de meio milhão de judeus das comunidades dizimadas pelos nazis entre Julho e Dezembro de 1941, com a activa colaboração local.
Vinte e oito anos depois da libertação, é tempo de reconhecer que a história dos países do Leste europeu não é apenas uma história de ocupação soviética e luta pela independência, é também uma história de colaboração com o nazismo. Esse caminho não pode ser feito pela UE, só os próprios o podem percorrer. Mas colocar em pé de igualdade nazismo e estalinismo sob a chancela geral e abstrata do totalitarismo não contribui para a construção de uma memória viva e actuante de que tanto fala a resolução do Parlamento europeu.
Só se pode comparar o que se conhece. De contrário, o que vigora são as falsas analogias que de tanto repetidas tomam o lugar da história.