O fim anunciado das galerias Lumière e a angústia dos comerciantes sem casa
Empresa imobiliária detentora do edifício dos anos 70 onde já houve duas salas de cinema quer instalar ali um empreendimento turístico. DRCN está a analisar o pedido. Alguns comerciantes já aceitaram sair
O primeiro sinal de mudança surgiu há um ano, ainda tímido, quando a empresa Imocpcis – Empreendimentos Imobiliários chamou Dina Ferreira, criadora da Livraria Poetria, para uma conversa informal. A sociedade anónima de investimentos imobiliários estava prestes a mudar de dono – mas a Dina Ferreira nada mais foi dito sobre o futuro das Galerias Lumière, onde tem casa desde 2003 a única livraria de poesia da cidade. “Pensamos sempre que íamos fazer parte do novo projecto”, comenta Francisco Garcia Reis, que em 2017 abraçou, com Nuno Queirós Pereira, a missão de manter aberta aquela “livraria gourmet”, como um dia lhe chamou Valter Hugo Mãe.
O anúncio do fim das Galerias Lumière, construídas nos anos 70 pelo arquitecto Magalhães Carneiro, precipitou-se, inesperadamente, nas últimas duas semanas. Quando Francisco e Nuno voltaram de férias souberam que vários comerciantes com quem partilham as galerias já se tinham reunido com a empresa. Quatro assinaram acordos para sair, cinco permanecem na angústia da espera. No local, nascerá um empreendimento turístico.
A Poetria não foi ainda notificada, mas já se encontrou com advogados da empresa e sabe que terá de sair até Outubro de 2020. Na conversa informal terá sido dito que o espaço seria para “terraplanar”, embora essa versão não seja oficial. O PÚBLICO tentou esclarecer junto da Imocpcis, com novo presidente do conselho de administração desde 30 de Abril, qual o futuro do espaço, mas sem sucesso.
Na Câmara do Porto, informa o gabinete de comunicação, deu entrada um “Pedido de Informação Prévia, sobre a viabilidade de realizar obras de alteração com vista à instalação de um empreendimento turístico”. A autarquia ainda não deu “informação favorável” e aguarda o parecer solicitado à Direcção Regional de Cultura do Norte (DRCN). Ao PÚBLICO, esta entidade confirmou que deu entrada na Direcção de Serviços dos Bens Culturais, na passada segunda-feira, um “projecto de arquitectura para o edifício em causa”. Este “ainda não foi analisado”, mas haverá fumo branco até 13 de Novembro.
Para Madalena Correia, da loja Tête à Croissant, já nada disso contará. Na sexta-feira da semana passada cederam à “pressão” e assinaram um acordo para sair até ao fim do ano. Prescindiram do tempo de contrato que ainda tinham, até Maio, e em troca a empresa não cobrará mais rendas. As movimentações na galeria, com alguns estabelecimentos a fechar e outros a chegar a acordo, fez a proprietária, filha de Madalena Correia, crer que seria esse o melhor caminho. Mas alguma mágoa ficou: “Talvez não devêssemos ter assinado”, comenta Madalena. Para já, impelidas pelas “rendas impossíveis”, não pensam em abrir noutro local do Porto.
A angústia é semelhante na Poetria. E motivou até uma carta, com pedido de reunião, ao presidente da Câmara do Porto. A resposta ainda não chegou e na pequena livraria teme-se o futuro. “Temos receio que as rendas sejam todas incomportáveis e não encontremos um local”, diz Francisco Garcia Reis. A Poetria, diz, foi ganhando no “bairro” estatuto de dinamizadora cultural e “representa um património”. Por ela, pelas Galerias Lumière e pela cidade, Francisco Reis espera uma mobilização da “sociedade civil”: “Acho absurdo não se limitar a construção de hotéis. A cidade caminha para uma homogeneização.”
O edifício de Magalhães Carneiro, informa a DRCN, não está classificado. Para o arquitecto Domingos Tavares não tem, do ponto de vista arquitectónico, um “interesse significativo”. Mas guarda um “valor patrimonial”: é “testemunho da forma encontrada pelos arquitectos para responder ao modo como a cidade crescia num determinado momento”. Nasceu como um banco, com dois cinemas estúdio e uma zona de lojas com “influência inglesa”, conta. Professor jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e investigador da história da arquitectura, Domingos Tavares considera um “disparate” fazer “tantos hotéis na cidade”. Mas recusa saudosismos excessivos: “As cidades transformam-se e se formos à procura da cidade medieval já não temos construção nenhuma, foi quase tudo abaixo. Destruir a cidade do século XX para construir a do século XXI é algo relativamente natural, embora eu não goste.”
José Pedro Tenreiro tem estudado a obra do arquitecto Magalhães Carneiro e do seu sócio João Serôdio – também autores das galerias Pedro Cem, da Urbanização de São João da Foz e do Parque Residencial da Boavista, conhecido como Foco (esta última com Agostinho Ricca). As Galerias Lumière, entre as Ruas José Falcão e das Oliveira, foram construídas por uma sociedade pertencente ao extinto Banco Português do Atlântico, para a qual a dupla de arquitectos trabalhou por diversas vezes. “É uma sociedade que marca muito a cidade numa altura em que se constrói bastante, um pouco como agora”, recorda. “Apostam numa série de iniciativas que são as galerias comerciais, muitas vezes com cinemas. E trazem um cosmopolitismo anglo-saxónico ao Porto”.
As Lumière são “das primeiras ligadas a esta sociedade no centro da cidade” e “das primeiras com duas salas de cinema”. Estes espaços, diz o historiador de arquitectura, “abriram os interiores comerciais à cidade”. E isso foi “inovador”. Para lá do valor arquitectónico e patrimonial há para José Pedro Tenreiro um lado de história. “Desaparecendo a galeria deixamos de ter acesso a esse uso da cidade. Há uma memória muito ligada a isto.”