A crise
A ignorância do povo em geral é ainda hoje um dos trunfos mais poderosos com que a Esquerda pode contar.
Concordo com Rui Ramos quando ele escreve que a crise não é apenas da Direita, mas é também da Esquerda. Penso, porém, que a crise é mais abrangente e mais funda: é uma crise da democracia ou, se quiserem, da democracia europeia e ocidental. Uma falência ideológica não é caso inédito: no final da I Guerra Mundial, em 1919, o liberalismo ou o demo-liberalismo, que fora dominante no século XIX, ficou de rastos, generalizadamente reputado como uma ideologia vácua, impotente para reparar o desânimo ou o desespero causados por uma carnificina sem sentido ou razão de ser. Foi neste vazio ideológico, como se sabe, que medraram os regimes totalitários. Mas havia mais e não menos importante: a guerra habituara os europeus à brutalidade e à violência. Creio que, sem esta reformatação da sensibilidade humana, o Terror estalinista, hitlerista, mussoliniano, franquista teria tido muito maior dificuldade em se estabelecer – ou não se teria estabelecido.
Mas a Europa, no final da Segunda Grande Guerra, recompôs-se, como também sabemos. Os vários Estados europeus abraçaram a social-democracia, um ideário concertado nos finais dos anos quarenta entre de De Gasperi, primeiro-ministro italiano, e Adenauer, o chanceler alemão. Curiosamente, ou não, ambos eram democratas-cristãos. Esta raiz ou génese cristã do Estado Social não deve ser subestimada. De facto, ela confronta-nos, hoje em dia, com um enorme paradoxo. A Democracia Cristã, ao contrário do que se poderia esperar, foi a grande pioneira da protecção social dos mais pobres: não alijou a carga da caridade para cima das costas dos cidadãos, pelo contrário, erigiu-a – transformando-a – como obrigação política dos Estados. Este desafio, esta obrigação, este imperativo partiram da Direita.
Por meandros longos de explicar, esse programa da Democracia Cristã foi apropriado pela Esquerda socialista. Compreende-se: a União Soviética, apesar do contributo decisivo que dera para a vitória sobre o Nazismo, levantou, sobretudo depois do XX Congresso do PCUS em 1956, dúvidas e desconfianças irrespondíveis sobre a bondade do comunismo e sobre a viabilidade da Revolução social e política. A Esquerda socialista virou Esquerda social-democrata: uma ideologia de compromisso entre o capitalismo e o socialismo, tendo este sido relegado para um futuro incerto. A social-democracia, em contraste com o liberalismo oitocentista, era firmemente estatista, exigindo ao Estado assistência aos mais depauperados, a criação de uma pesada gama de serviços sociais, uma economia de mercado regulamentada, uma farta redistribuição da riqueza e, no termo de um mais ou menos longo processo gradual, a realização da igualdade total: a revolução, sem Revolução. A costela democrata-cristã condescendeu com este destino socialista projectado no longo prazo… e utópico. Mas, creio, subestimou o valor simbólico da promessa de uma sociedade sem classes.
A Social-Democracia viveu disto durante décadas. A tal ponto que acabou por se confundir com um regime em que o Estado democrático só era democrático se olhasse pelo povo como um pai olha pela sua família: férias pagas e subsídios de toda a ordem e feitio. A liberdade tornou-se (ou continuou?) secundária, até mesmo dispensável. Um Estado democrático era aquele que distribuísse mais dinheiro e prodigalizasse mais “serviços” e mais “direitos”. Muitos anos passados sobre a colaboração entre De Gasperi e Adenauer, este programa, originariamente um programa democrata-cristão, foi apropriado por uma nova esquerda anti-revolucionária, anti-violência e gradualista: a social-democracia, estabelecida depois da Segunda Guerra e largamente financiada pelo Plano Marshall dos EUA. Nos países do sul da Europa continuou a usar-se a roupagem ideológica socialista, mas, ontem como hoje, nada de verdadeiramente essencial separa os dois credos, o socialista e o social-democrata.
Tal apropriação é há muito um facto consumado, com uma dose de perversão e ironia que espanta e exaspera, mas que tem a sua lógica. Os “sociais” ultrapassaram os “democratas” em zelo socialista e democrático. Com isso, empurraram a Social-Democracia para o campo da Direita, que, alegadamente e com razão, deixou de ter um programa próprio e apenas compete por oferecer ainda mais Estado Social do que a Esquerda, com a irrelevante diferença – aos olhos do eleitorado – de que ofereceria a mesma protecção com menores custos. Não admira, pois, que haja um “povo socialista” que ouve sem ouvir os argumentos da Direita. Não acredita nem confia nela, fatalmente conotada com os interesses dos ricos. Nada sabe sobre as atrocidades do comunismo na URSS, na China ou no Camboja. Só sabe (quando sabe) do Hitlerismo e do Holocausto, tudo ignorando a respeito das atrozes tiranias estalinistas, maoistas e polpotistas, que conseguiram exceder em violência, opressão e barbárie o curriculum dos fascismos europeus.
A ignorância do povo em geral é ainda hoje um dos trunfos mais poderosos com que a Esquerda pode contar. A ignorância e a ingenuidade: Esquerda e Direita perpetraram, em doses semelhantes e de maneiras não muito diferentes, as maiores atrocidades da história contemporânea. Ao que chegámos hoje em dia? A um tempo de suprema ironia: a Direita está sem programa porque o seu programa foi muito habilmente usurpado pela Esquerda. E, incompreensivelmente, insiste em concorrer com a Esquerda no terreno da Esquerda, quando a principal tarefa que se lhe deveria atribuir seria a de libertar a sociedade civil da tutela do Estado e do esbulho que este, pela via fiscal, exerce sobre os cidadãos.
A hecatombe do CDS nas eleições de 6 de Outubro exprime não só um deserto ideológico, como uma falta de tradição, no sentido de genuíno enraizamento social. O PSD lá conseguiu ressuscitar, mas pela simples razão de que existe um “povo PSD”, como existe um “povo socialista”. Não existe, porém, um “povo CDS”.