Polarização do emprego e desvalorização do trabalho em Portugal

Só a adoção alargada de modos de governo das empresas semelhantes aos que existem na Alemanha pode contribuir para devolver poder de compra e dignidade aos trabalhadores.

A polarização do emprego corresponde a uma situação em que aumentam tanto os empregos qualificados/bem pagos como os desqualificados/mal pagos enquanto se reduzem os empregos com qualificações e salários médios. Este fenómeno, que é suposto caracterizar os mercados de trabalho na atualidade, é apontado como uma das causas do declínio das classes médias e do aumento das desigualdades. Nos últimos 15 anos surgiram vários estudos que convenceram o mundo académico e a opinião pública de que a polarização do emprego é inevitável. Esses estudos podem e devem ser questionados. 

A polarização do emprego não é uma fatalidade

O argumento central dos estudos fatalistas sobre a polarização do emprego é a tecnologia. Segundo David Autor, a atual revolução digital substitui o trabalho de qualificação intermédia, contrastando com as inovações tecnológicas passadas que substituíam o trabalho desqualificado. De acordo com esta tese, as novas tecnologias não afetam as profissões desqualificadas (ex: prestação de cuidados pessoais) mas substituem parte do trabalho dos técnicos intermédios (ex: contabilistas) e aumentam a produtividade dos gestores e técnicos superiores. Muitos trabalhadores com funções intermédias ficam então disponíveis para as profissões desqualificadas, fazendo baixar o salário destas enquanto o salário das profissões mais qualificadas aumenta devido à maior produtividade. Assim se explica o declínio da classe média e a polarização do emprego. Como as profissões intermédias estão a desaparecer, e apesar do aumento generalizado do nível de instrução, há pessoas que, mesmo com níveis educativos elevados, estão em empregos desqualificados e mal pagos.

No entanto, outro tipo de estudos mostra que a polarização só se verifica nalguns países, nomeadamente nos países anglo-saxónicos. Nos países escandinavos, por exemplo, continua a haver uma melhoria geral das qualificações sem declínio das profissões intermédias. Como a maioria dos estudos ordena os empregos com base no salário, coloca-se a questão: trata-se de polarização do “emprego” ou de polarização dos salários, com salários muito elevados por um lado e muitos salários baixos por outro? Para responder a esta questão é necessário saber como evolui a atividade de trabalho em si, em cada profissão, em vez de só analisar os níveis salariais ou o número de trabalhadores em cada profissão.

A situação em Portugal: uma organização do trabalho que desvaloriza os trabalhadores

A análise dos dados do INE mostra uma melhoria geral do nível de educação, transversal às profissões. Por outro lado, observa-se alguma polarização salarial: nos últimos dez anos, o número de pessoas em profissões/salários elevados aumentou, o número de pessoas em profissões/salários intermédios baixou e o número de pessoas em profissões/salários baixos estagnou. Isto significa que a evolução dos salários ficou aquém da evolução do nível de educação. Ou seja, a melhoria do “capital humano” de certos trabalhadores não é valorizada pelo mercado de trabalho, ou o seu trabalho é desvalorizado.

O que significa “valorizar o trabalho”? Pelo menos duas coisas. Primeiro, significa reconhecer-lhe valor, o que normalmente se traduz na atribuição de um valor monetário, um salário elevado. É este o aspeto a que se dá mais atenção. Segundo, significa fazer com que o trabalho tenha mais valor, ou seja, fazer com que as tarefas e as atividades de trabalho sejam úteis, que tragam valor não só para a empresa mas também para o trabalhador. Valorizar o trabalho significa, neste sentido, valorizar, trazer valor à pessoa que desempenha o trabalho, o que requer que as tarefas sejam interessantes, que mobilizem e desenvolvam as competências das pessoas.

Ora, dados de um inquérito europeu mostram que a atividade de trabalho das profissões qualificadas e intermédias em Portugal não se alterou substancialmente nos últimos anos, mas que a atividade nas profissões desqualificadas sofreu alterações substanciais: houve uma redução do nível de autonomia e do nível de complexidade e uma subida do nível de controlo e da intensidade no trabalho. Isto é, o valor da atividade de trabalho nas profissões desqualificadas diminuiu, tanto para a empresa como para o trabalhador, o que acaba sempre por se traduzir numa diminuição do seu valor pecuniário, do salário.

O que determina o valor do trabalho, no segundo sentido, é a organização do trabalho, a forma como as tarefas são divididas entre as pessoas e entre as profissões. Nos países escandinavos evita-se dar tarefas interessantes só a certas profissões e tarefas sem interesse e sem autonomia a outras profissões. É isso que faz falta em Portugal, modelos organizacionais que valorizem o trabalho.

Soluções

Os dados mostram que os países onde a organização do trabalho é mais valorizadora são aqueles em que os trabalhadores participam nas decisões das empresas, caso dos países escandinavos. Muitas das desigualdades das nossas sociedades, desigualdades que não cessam de aumentar, são geradas no mundo do trabalho, no seio das empresas. Invocar as inovações tecnológicas para explicar os fenómenos de polarização social em curso serve sobretudo para os justificar, os naturalizar. Como se a tecnologia determinasse por si um certo tipo de sociedade.

Parece-me hoje claro que promover a justiça social através da redistribuição da riqueza produzida, como nas décadas do pós-guerra, deixou de ser suficiente e eficaz. É necessário intervir a montante, no mundo da produção, onde se geram as desigualdades. Fica cada dia mais notório que os sistemas de redistribuição públicos, as instituições do Estado Social, não conseguem hoje inverter a tendência de aumento das desigualdades. Assim, só a adoção alargada de modos de governo das empresas semelhantes aos que existem na Alemanha e nos países escandinavos, em que os trabalhadores são representados nos conselhos de administração e participam em conselhos de empresa eficientes, pode contribuir para devolver poder de compra e dignidade aos trabalhadores.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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