O malabarismo de Hustlers e o xeque-mate de Jennifer Lopez

Nem tudo são solas vermelhas e chinchilas às costas: o desejo de independência e conforto implica uma subversão, que não se esgota em feminismo garrafal ou opulência pop.

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No clímax do romance Giovanni’s Room, James Baldwin coloca uma questão: “De que vale um americano infeliz?” Seja desonesto ou imoral, parece que vale tanto quanto o seu dinheiro. Hustlers, o coleante novo filme de Lorene Scafaria, deixa as mulheres dissecarem esse nervo — as brilhantes Jennifer Lopez e Constance Wu seguram o bisturi — para forjarem o seu lugar à mesa do poder.

O grande ecrã é marchetado com automóveis, jóias, penthouses, Louboutins e casacos de pele. Strippers nova-iorquinas investem os seus corpos tonificados contra o varão, contra homens ricos e nauseabundos. Poderia ser, em pontos, uma ode ao hedonismo masculino: dólares a cair de fatos e gravatas, maçã-de-adão em seco perante provocações que dançam. Mas todas elas estão em controlo. E cedo se acende essa candeia, ou o néon púrpura, que alumia a película.

Na grande sequência de pole dance, Lopez diz eureka: abraçada a centenas de notas, ri-se de quem as atirou enquanto sai, em glória, do palco. Ela é Ramona, a matriarca que acolhe a aspirante Dorothy, interpretada por Wu. Quando a grande recessão de 2008 esvazia o clube de strip, Ramona torna-se a cabecilha de um gangue que seduz, droga e desfalca os trabalhadores de Wall Street.

Nem tudo são solas vermelhas e chinchilas às costas: o desejo de independência e conforto implica uma subversão, que não se esgota em feminismo garrafal ou opulência pop (dos ribombantes anos 2007-2011, Gimme More é puro êxtase e Club Can’t Handle Me revela-se um enorme momento emotivo). Neste processo, um mundo historicamente transaccionado pelos homens do capitalismo é tomado por quem não deixaram sentar-se à mesa para o negociar.

Esse poder fulminante é encenado por entre os pingos da chuva, desviado desses americanos mais felizes. Torna-se precário; é algo que modula a carga tonal de um filme com sumptuosa cinematografia e arrepiante curadoria musical, em permanente malabarismo. Entre Chopin e Janet Jackson (cuja icónica Control abre o jogo de Hustlers, bem no arranque), não é preciso escolher. Heist cómico ou drama moral? Ambos, ao depositar-nos a responsabilidade do julgamento — nós que vemos as personagens deslocarem-se entre a carência e o excesso, da irmandade ao calculismo, pela noite lúbrica até ao dia sóbrio. Wu dá a Dorothy uma transparência quase vítrea, do abandono ao exemplo que vê em Ramona, um compósito de temeridade, energia maternal e alta tensão.

Em Toronto, J.Lo foi certificada com a melhor actuação feminina do ano: um lamiré da consensualidade crítica a que Lopez se furtou depois de Selena e Out of Sight, para se lançar nas inócuas comédias românticas de domingo à tarde. Chegamos a uma segunda renascença profissional (que a levará ao Super Bowl em 2020), com o seu papel definitivo em cinema.

Significa isso que a prestação de Lopez em Hustlers é o supra-sumo da representação em 2019? Claro que não. Merece um Óscar, como se tem discutido? Talvez. Embora com destreza e nuance, dificilmente será suficiente para obliterar a competição. O eventual reconhecimento da celebridade e empreendedora J.Lo pela Academia seria, mais do que um testemunho ao talento bruto na representação ou na música, o aplauso à sua competência transversal e ao derrame de suor.

Se Lopez conseguir o que Glenn Close falhou, conseguirá uma correcção histórica para a sua figura unânime, mas escassamente condecorada em Hollywood. São precisos grandes golpes para suscitar uma mudança improvável — e Hustlers é impossivelmente grandioso.

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