O nacionalismo de Xi Jinping
Ao contrário de Mao, que exaltava o caos e lançou os seus “guardas vermelhos” ao assalto do partido, Xi é um homem da ordem. Quer manter a abertura da China ao mundo mas evitando qualquer contágio das ideias liberais e democráticas.
1. O nacionalismo de Xi Jinping recorre sistematicamente ao contraste entre a histórica “humilhação” da China e a sua grandeza, actual e futura. O país transformou-se na segunda economia mundial e ganhou o estatuto de potência emergente. Ao mesmo tempo, o velho nacionalismo ocidentalista deu lugar a uma postura de desafio às ideias e instituições ocidentais.
Comecemos pela actualidade da semana. No dia 1 de Outubro, Xi Jinping presidiu em Pequim às comemorações do 70º aniversário da República Popular da China. Uma maciça parada militar expôs o seu novo poderio. Num tom marcadamente nacionalista, o conciso discurso de Xi apontou o lema que define o seu mandato: “A luta pelo renascimento do grande sonho chinês.” O sucesso deste slogan faz evocar o Make America Great Again, de Donald Trump. A chave do discurso de Xi resume-se em poucas palavras: “Nenhuma força será capaz de abalar esta grande nação.”
A comemoração foi “estragada” pelas imagens de Hong Kong nesse mesmo dia, disseram observadores. Mas Xi falava para os chineses e não para o estrangeiro. Exibia perante os concidadãos a “nova grandeza da China”.
O fio condutor da História contemporânea chinesa não é de natureza social mas nacional (ver P2 de 29 de Setembro). A revolução chinesa foi primordialmente nacionalista. Não assentou na luta de classes mas na resposta a um traumatismo histórico: a “humilhação nacional”, primeiro pelos “bárbaros ocidentais” com as “guerras do ópio” e, depois, pelo jovem e agressivo imperialismo japonês.
Os primeiros revolucionários tornaram-se ardentes ocidentalistas. Para suster o seu declínio, a China deveria adoptar técnicas ocidentais e instituições de inspiração ocidental. Não tinham outra via para a “modernização”, que neste caso significava a sobrevivência nacional.
2. Em contraste com o início do século XX, o actual nacionalismo chinês ambiciona, inclusive, constituir um modelo alternativo às democracias liberais. A China tornou-se mais rica e mais forte. No entanto, a ideia de renascimento da grandeza da China permanece, e cada vez mais intensamente, no centro da ideologia do Partido Comunista Chinês (PCC), e de forma muito mais patente desde a ascensão de Xi ao poder supremo. Ele procedeu a uma manifesta inflexão nacionalista.
“Qualquer líder que deseje alcançar ou manter a legitimidade na China moderna deve corrigir o ‘século de humilhação’ e devolver à China o seu justo lugar no mundo, enquanto nação poderosa”, escreveu o sino-americano Xyaoyu Pu (The Chinese Journal of International Politics, 2017). “Assim, o slogan do ‘Sonho Chinês’ tem uma importante função política enquanto mobilizador do apoio doméstico.”
3. O nacionalismo do século XXI tem hoje dimensões muito mais largas do que o de um século antes. A China é hoje uma potência, embora seja ainda pobre.
Do ponto de vista das relações internacionais, isto levanta outro problema num horizonte de poucos anos: que significa a noção de “revitalização da China”? Interroga-se Xyaoyu: “Irá uma China em ascensão desafiar ou até substituir os Estados Unidos como nova superpotência? (…) O posicionamento internacional da China também moldará a resposta das potências estabelecidas à ascensão da China. Por exemplo, se a China procurar crescer dentro da ordem liberal existente, a relação sino-americana pode não ser um jogo de soma-zero e os Estados Unidos podem perfeitamente acomodar-se à ascensão chinesa. No entanto, se a China procurar substituir os Estados Unidos como nova superpotência, poderá ser inevitável um conflito sino-americano.” Não temos hoje uma resposta para esta crucial interrogação. É, de resto, um tema de discussão entre as elites chinesas.
4. A demarche de Xi Jinping consiste em articular os dois momentos do nacionalismo: o tema da “humilhação nacional” e a ascensão da China ao estatuto de potência emergente. Combina as queixas históricas com as novas ambições nacionais, o caldo de cultura do novo nacionalismo. Trata-se, ao mesmo tempo, de impor uma narrativa oficial da História e de combinar os valores da China imperial com os do regime comunista. “O futuro está no passado”, resumiu um jornalista.
“A China conta a sua própria História à sua população, cria uma narrativa para lhe pedir esforços suplementares e fazê-la aceitar o inaceitável”, explica a sinóloga Camille Brugier. “Estabelecer como prioridade o objectivo de engrandecer o país é também uma forma de justificar o facto de não conceder direitos cívicos e políticos à população.”
A arte de governar a China pós-maoista é conhecida: o partido garante a ordem e a segurança e explica que uma democratização de tipo ocidental não só ameaçaria a estabilidade como ameaçaria a prosperidade dos cidadãos.
“Instrumentalizando o nacionalismo de que pretende ter o monopólio, cria a percepção de que o partido é o principal artesão da ascensão do país, da modernização das suas forças armadas e do aumento sem precedentes da sua influência internacional e do respeito de que hoje goza nos quatro cantos do planeta”, sublinha o sinólogo Jean-Pierre Cabestan.
O certo é que a maioria da população partilha desta argumentação. A crise económica de 2008, a euforia pela ultrapassagem económica do Japão, em 2010, e a aparente erosão que afecta as democracias ocidentais fornecem argumentos às teses de Xi sobre a eficácia do modelo político chinês. Na opinião dos correspondentes estrangeiros, as elites intelectuais são favoráveis à manutenção do Estado forte e centralizado.
5. “Xi está a usar o nacionalismo e o apelo à unidade para enviar a mensagem de que dará uma resposta dura aos inimigos, tanto aos de dentro como aos de fora da China”, observa o sinólogo britânico Steve Tsang. Ao contrário de Mao, que exaltava o caos e lançou os seus “guardas vermelhos” ao assalto do partido, “Xi é um homem da ordem”. Difere também de Deng Xiaoping, que era “um pragmático”. Xi é tudo menos um liberal ou um pragmático. É um ideólogo que pensa que “o partido deve controlar o país de forma infalível”. Quer manter a abertura da China ao mundo mas “evitando qualquer contágio das ideias liberais e democráticas.”
“Os líderes chineses são especialmente sensíveis à desordem doméstica causada por ameaças estrangeiras”, adverte Wang Jisi, decano da Escola de Estudos Internacionais, da Universidade de Pequim.