Espanha vai restaurar o que resta do testamento de Fernão de Magalhães

Do original de 1519 há apenas um fragmento, mas o conteúdo do documento conhece-se na íntegra graças a uma cópia de época. Através dele se fica a saber que o navegador quis garantir o futuro dos filhos, dos irmãos e da mulher, mesmo que ela voltasse a casar. E que quis ver o seu escravo libertado.

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O único fragmento que resta do testamento original de Fernão de Magalhães foi identificado há dez anos Julio Muñoz/EPA

Sevilha, 24 de Agosto de 1519. No dia seguinte pôr-se-ia a caminho para Sanlúcar de Barrameda (Cádis), de onde viria a partir com destino às Ilhas Molucas, hoje território indonésio, viajando para Ocidente e chefiando uma armada de cinco naus e quase 240 homens. Estava ao serviço de Carlos I de Espanha mas não era aquele o seu reino e, talvez também por isso, tenha decidido assinar em português (Magalhaes, à época). Queria deixar claro a quem caberia o seu património caso não regressasse. Morreu a 27 de Abril de 1521 na Ilha de Mactan (Filipinas), muito longe da Andaluzia, onde dois anos antes deixara a mulher grávida e o filho de seis meses.

É precisamente o testamento de Fernão de Magalhães (1480-1521) que Espanha vai agora restaurar, a propósito dos 500 anos da primeira viagem de circum-navegação, iniciada por este navegador português em 1519 e terminada, três anos mais tarde, pelo basco Juan Sebastián Elcano, sem que nenhum deles tivesse à partida qualquer intenção de dar a volta ao mundo.

A intervenção naquele que é o único fragmento do documento original que se conhece — um pedaço de papel de muito boa qualidade, segundo os técnicos, com 21X18 cm — será feita no Instituto Andaluz do Património Histórico (IAPH) e deverá estar terminada em Dezembro. Irá, depois, ser mostrado em Firmaron de su mano: Magallanes e Elcano, uma exposição que será inaugurada no Arquivo Provincial de Sevilha no final do ano e que reunirá 14 dos 50 documentos relacionados com a primeira volta ao mundo que integram o acervo desta instituição (a mostra passará depois pelos oito arquivos da Andaluzia).

Últimas vontades

O testamento de Magalhães revela um homem apostado em garantir um futuro confortável para a sua mulher, Beatriz, e para os seus filhos, naturalmente, mas um homem que também que não esquece os irmãos que deixara em Portugal. É ainda através deste documento que ordena que se façam doações a várias instituições religiosas para que se reze pela sua alma e que expressa a vontade de ver libertado o seu escravo.

“É um documento mítico porque tem a data da véspera da partida e é um reflexo da sua personalidade, tanto a privada, como a social e religiosa”, disse na apresentação do documento à imprensa María Campoy, técnica do departamento de património documental e bibliográfico do IAPH, aqui citada pelo jornal El País, referindo-se ao manuscrito “de fácil leitura” em que lega a maior parte do seu património à sua mulher e filhos e, no caso da morte destes, nomeia herdeiros os seus irmãos, Diogo e Isabel de Magalhães. A capa em que foram guardados os fólios do testamento no arquivo sevilhano, acrescentou Campoy, descoseu-se e isso pode explicar terem-se perdido quase todos ao longo dos séculos.

Neste testamento o navegador, que fez com o filho ilegítimo, Cristóvão Rebelo, a arriscada viagem em que se atravessou pela primeira vez e em apenas três meses o Pacífico depois de Magalhães ter descoberto o estreito que o liga ao Atlântico e que hoje tem o seu nome, estipula ainda que será o sogro a gerir os bens até que os filhos completem 18 anos e que a mulher não deverá ver-se privada da parte que lhe cabe nem mesmo se decidir voltar a casar.

Os nomes da mulher, do sogro e dos dois irmãos constam da folha manuscrita que pertence à colecção do Arquivo Histórico Provincial de Sevilha e que, depois de aprofundadas as análises ao papel e às tintas já iniciadas, será confiada aos restauradores. “Está em mau estado”, reconheceu Mónica Santos, outra das técnicas do instituto andaluz.

O fragmento foi localizado em 2009 por Juan Gil, investigador e catedrático de Filologia Latina da Universidade de Sevilha, que depois o publicou no seu livro El exilio portugués en Sevilla, de los Braganza a Magallanes. O conteúdo do documento na íntegra era já conhecido, no entanto, graças a uma cópia que hoje faz parte do importante Arquivo das Índias, em Sevilha. Foi mandada fazer ainda no século XVI no âmbito de uma disputa pela herança do navegador encabeçada pelo seu cunhado Jaime Barbosa, depois de terem morrido a mulher, o sogro e o filho de Magalhães, Rodrigo (Carlos, o seu filho mais novo, morreu à nascença), informa a EFE, a agência de notícias espanhola.

As comemorações do início desta arrojada viagem com que Magalhães esperava provar que o arquipélago de Maluco — o outro nome dado às Molucas, conhecidas como as “ilhas das especiarias”, à data absolutamente estratégicas em termos económicos para os dois reinos ibéricos — pertencia a Espanha e não a Portugal, de acordo com a divisão feita pelo Tratado de Tordesilhas (1494), viram-se envolvidas em polémica no início do ano. Alguns jornais e historiadores espanhóis acusaram Portugal de estar a tentar apagar o nome de Elcano e o contributo hispânico da primeira circum-navegação do globo, tanto no calendário de festas como na candidatura desta volta ao mundo a património da Humanidade. Uma polémica que levou a um estranho parecer da Real Academia de História espanhola, muito criticado por historiadores dos dois lados da fronteira, e chegou a obrigar os governos dos dois países a demonstrarem publicamente a sua sintonia no que toca à celebração deste passado histórico.

“Se temos de festejar hoje a descoberta do Estreito e a travessia do Pacífico, celebremos Magalhães; se temos de festejar a primeira circum-navegação, elogiemos Elcano. Não sejamos mesquinhos com as glórias de cada um”, dizia ao PÚBLICO em Março e a propósito da contenda, Juan Gil, o investigador que descobriu o pedaço do testamento do navegador que agora vai ser restaurado.

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