Casa na Rua da Vitória: Mais uma perda irreparável para a riqueza do centro histórico do Porto

As gerações futuras poderão ver a “porta” com o símbolo dos cristãos novos, mas nunca compreenderão como se desenhava a cidade há cerca de 500 anos. Antes poderão apreciar o “faz-de-conta” de uma mistura de estilos e desproporções, de quem não compreendeu a história e a essência do lugar onde intervém.

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Face às declarações proferidas em Assembleia da Câmara Municipal do Porto sobre as obras que decorrem na casa que conta a história dos judeus no Porto - em que a câmara diz estar a acompanhar a obra de forma “a garantir o total respeito pelo projecto, que contempla a manutenção da fachada onde se encontram os inscritos [cruz símbolo dos cristãos novos]” -, lamentamos verificar que as entidades considerem que a salvaguarda do Património se restrinja, neste caso, à preservação de uma das fachadas de um edifício que está a ser integralmente demolido.

A classificação da cidade do Porto enquanto Património Mundial da UNESCO foi atribuída ao conjunto edificado na sua diversidade de escalas, formas e valores estéticos, e não ao valor patrimonial individual de cada construção. A par dos exemplares cujo elevado interesse justificaram a classificação individual, cada construção de caráter mais “modesto” reflete os condicionalismos de uma época e é o testemunho da inteligência de gerações que souberam adaptar, com os meios reduzidos e materiais existentes, a sua forma de viver às condições topográficas e climáticas da cidade do Porto.

A “monitorização” pelas várias entidades deste processo de pouco vale, uma vez que foi aprovada a total desvirtuação da estrutura existente, nas suas proporções e linguagem arquitetónica. As gerações futuras poderão ver a “porta” com o símbolo dos cristãos novos, mas nunca compreenderão como se desenhava a cidade há cerca de 500 anos. Antes poderão apreciar o “faz-de-conta” de uma mistura de estilos e desproporções, de quem não compreendeu a história e a essência do lugar onde intervém.

A forma da casa na Rua da Vitória, que já não existe, e a composição dos vãos das fachadas, em particular na fachada posterior, ilustrava um período importante e pouco representado da arquitetura civil do Porto e tinha um papel relevante na paisagem histórica desta zona da cidade, dada a sua exposição no conjunto do morro da Vitória.

A sua alteração e adulteração, provavelmente para se aproximar a modelos compositivos que, de forma pouco culta, se pensam mais adaptados ao programa ou ao expectável como imagem urbana “genuína” do Porto, é mais uma perda irreparável para a riqueza do centro histórico e da cidade.

Uma perda que demonstra a incapacidade de perceber o contexto por parte dos promotores e autores de projeto, mas também a incapacidade de verdadeiramente “monitorizar” e prevenir de forma sistemática e coerente as operações que podem descaracterizar ou destruir o património histórico, por parte de quem compete a análise das intervenções em áreas classificadas.

O projeto para o local ilustra não apenas a demolição das fachadas deste edifício como a escavação no seu subsolo (granítico) de múltiplos pisos para ligação aos restantes edifícios do conjunto a intervir, com entrada pelo Largo de S. Domingos, a cota muito inferior, e que fazem parte do novo projeto hoteleiro.

A reabilitação que levámos a cabo na Rua da Vitória fez-se num edifício que se encontrava completamente degradado, no qual se identificaram todos os elementos com potencial de serem reabilitados, como as paredes estruturais em alvenaria de granito e quase todas as vigas originais, talhadas à mão, em castanho, respeitando sempre o princípio da “Reversibilidade da Intervenção” que prevê que a obra nova possa ser futuramente demolida, sem causar danos à pré-existência.

Em 2009, vimos com muito orgulho esta nossa intervenção merecer a medalha de ouro na Bienal de Arquitetura de Miami+Beach, nos Estados Unidos, evento que acolhe obras do mundo inteiro, tendo, ainda com mais orgulho, feito parte da exposição inaugural da Casa da Arquitetura, no mesmo ano. Em 2015 esta obra foi selecionada para fazer parte do roteiro do Open House Porto, tendo sido uma das obras com maior afluência, de acordo co a organização do evento.

A venda do imóvel foi o culminar de um processo difícil, mas consciente. Ao longo dos 15 anos que habitamos no Centro Histórico fomos testemunhas de um processo evolutivo absolutamente necessário, mas cujas oportunidades de defesa de uma vivência genuína, ainda que um pouco debilitada, vimos repetidamente desperdiçar.

Testemunhamos, ao longo destes anos, a forma como a grande maioria dos edifícios foram intervencionados, sem a necessária sensibilidade e conhecimentos de todos os técnicos envolvidos, falhando às gerações futuras na salvaguarda da genuinidade deste património excecional.

É ou deveria ser preocupante para todos.

Todo este processo já mereceu a atenção do ICOMOS, o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios, uma organização internacional não-governamental, órgão consultivo da UNESCO, que defende a conservação de monumentos e sítios no mundo.

Numa entrevista, o vice-presidente do Conselho Nacional deste organismo chamou a atenção para o perigo em que incorre a classificação do Porto Património Mundial, caso se repitam operações como a verificam no Palácio das Cardosas. 

Outro artigo mais recente, assinado por um conjunto de técnicos da área, salienta a perda de oportunidade de recuperação do Centro Histórico no respeito pelos princípios da Carta de Veneza de 1964, pelo favorecimento de uma política de “fachadismo”. Faz ainda alusão à avaliação feita em 2018 pelo ICOMOS, considerando que “várias intervenções desrespeitam a Convenção para a Proteção do Património Mundial e até a legislação nacional.” 

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

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