Golpe de marketing em Alfama
O problema da campanha do Minipreço nos estendais de roupa de Alfama não é ser publicidade a fazer de conta que não é publicidade. O problema é outro.
O problema da campanha do Minipreço nos estendais de roupa de Alfama não é ser publicidade a fazer de conta que não é publicidade. Conhecemos isso há anos. Chama-se product placement ou embedded marketing.
Em 2002, os candeeiros Boa Nova, de Álvaro Siza, apareceram em dois episódios da série Sexo e a Cidade a custo zero — foi pura sorte. No mesmo ano, um quarto do orçamento de Relatório Minoritário, de Steven Spielberg, foi financiado com product placement: a Toyota pagou cinco milhões para ter um Lexus futurista, a Nokia pagou dois milhões para os protagonistas usarem os seus auscultadores — e se vir os logos da Gap, Pepsi, American Express e Reebok também não é por acaso. Em 2014, a Emirates Airlines pagou 100 milhões para ter sete manequins vestidas com a farda das hospedeiras da companhia alinhadas atrás da equipa da selecção nacional que ganhasse o mundial de futebol do Brasil — foi a Alemanha. E há dias soubemos que a telenovela da SIC Nazaré tem uma personagem que é enfermeira porque a Ordem dos Enfermeiros pagou 36 mil euros.
Com mais ou menos dinheiro, desde os anos 1970 que é assim. As marcas querem aparecer sem parecer que pagaram para ali estar. Nisso, a campanha Estende a Renda do Minipreço segue uma linhagem com pedigree.
A diferença está no orçamento. O Minipreço não pagou milhões, nem milhares, nem nada que se aproxime dos valores do mercado de publicidade português. Pagou 50 euros a cada uma das 12 pessoas que penduraram cartazes nos estendais. 50x12=600. O Minipreço fez uma campanha publicitária com impacto mediático nacional, que gerou buzz nas redes sociais, 30 notícias e pseudo-notícias no Google e a “repercussão na sociedade” de que os especialistas em marketing falam por 600 euros. Perguntei a um especialista: alugar uma rede de mupis em Lisboa custa entre cinco mil e 30 mil euros. Alfama foi um bom negócio, mas não é a definição de win-win.
O que o Minipreço conseguiu é de mestre. Fez passar a mensagem de que é uma empresa “solidária”, que se preocupa com a cidade, que “quer combater a subida de rendas” nos bairros históricos e ajudar os pobres que estão a ser pressionados para sair das suas casas. Tudo isso e ainda poupou milhares de euros.
Declaração de interesses: os donos do PÚBLICO são donos do Continente. O Minipreço tem 4% do mercado e o Continente 22%, mas é possível que sejam adversários. Não lhes quero complicar a vida e sei que o grupo espanhol que comprou a rede teve um prejuízo de 420 milhões de euros no primeiro semestre deste ano.
Mas ontem quando acordei e li as notícias, a manchete do Guardian era sobre o choque causado por uma resposta de Boris Johnson, na véspera, num debate na Câmara dos Comuns, e cosi as duas coisas.
Emocionada, uma parlamentar trabalhista pediu a Johnson para “moderar a linguagem” de modo a não inspirar os fanáticos pró-Brexit e o primeiro-ministro britânico respondeu assim:
— I have to say Mr. Speaker I’ve never heard such humbug in all my life.
O dicionário Merriam-Webster diz que o primeiro registo de “humbug” é de 1751 e que significa “alguma coisa feita para enganar ou iludir”.
Não tenho a certeza de que “humbug” seja a palavra certa para descrever a campanha publicitária do Minipreço em Alfama. Mas à falta de melhor proponho esta.
O problema da campanha do Minipreço não é a ideia. O problema são os números. O Minipreço não distribuiu cupões de 50 euros pelo bairro de Alfama, onde ainda há dois mil eleitores, mais as crianças. Deu cupões de 50 euros a 12 pessoas do bairro. Definiu um limite de dez beneficiários e, com jeitinho, aceitou acrescentar mais dois. E, no início, quando a empresa de marketing foi ao bairro apresentar a proposta, não havia sequer a intenção de pagar fosse o que fosse. Queriam que as pessoas “estendessem” publicidade nos seus estendais a troco de nada.
Liguei a Lurdes Pinheiro, presidente da Associação do Património e População de Alfama e ex-autarca da CDU, e ela contou que foi a associação quem perguntou à agência de publicidade se “havia contrapartidas para os moradores”. “Fomos nós que perguntámos. Senão, seria como a Sagres, que nos Santos Populares e no festival do fado pendura bandeiras nas varandas de Alfama a troco de quatro garrafas de cerveja.” E a Sagres, contou também, nem pede licença: “Vi com os meus olhos eles abrirem o escadote e montarem as bandeiras nas varandas por fora.”
A conversa com Lurdes Pinheiro daria uma crónica inteira. Há uma tragédia a acontecer em Alfama. Explorar essa tragédia é um golpe de marketing. O problema é que é apenas isso.