Morreu Jacques Chirac, um político invulgar
Há quem diga que o antigo Presidente francês Jacques Chirac foi um camaleão, capaz de se adaptar às épocas e ventos da política, em França e na Europa. Pleno de contradições, marcou a segunda metade do século XX em França e os palcos internacionais, tornando-se um defensor da Constituição Europeia.
O antigo Presidente francês, primeiro-ministro e presidente da câmara de Paris Jacques Chirac morreu esta quinta-feira, aos 86 anos, anunciou o seu genro. A sua carreira política é uma das mais excepcionais da V República em França, pela riqueza de cargos que ocupou, mas também pela abundância de acontecimentos e reviravoltas. Teve a mancha de ter sido condenado por criação de empregos falsos na câmara da capital francesa.
Chirac, nascido a 29 Novembro de 1932 em Paris, é uma figura incontornável da política francesa e também europeia. Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, diz que “a Europa não só perdeu um grande chefe de Estado, mas também um amigo próximo”.
Político do centro-direita, Chirac foi eleito para dois mandatos sucessivos no Eliseu, entre 1995 e 2007. Foi primeiro-ministro (1974-1976) de Valéry Giscard d'Estaing, um Presidente centrista, e de François Mitterrand (1986-1988), o primeiro chefe de Estado socialista de França, numa experiência de coabitação política, que repetiu estando na posição contrária, quando teve o socialista Lionel Jospin como primeiro-ministro (1997-2002), estando ele no Palácio do Eliseu.
Durante 18 anos, entre 1977 e 1995, foi maire de Paris – este político muito alto, de grandes apetites, que segundo o Libération o faziam empanturrar-se de “omeletes gigantes a meio da noite e beber hectolitros de ‘cerveja bem fresca se faz favor’”, instalou no imaginário dos franceses a ideia de que era “um tipo simpático”, diz o jornal.
Retirou-se da vida pública em 2011, com a saúde bastante degradada, devido a um AVC sofrido em 2005. Apesar de não estar presente no seu julgamento, com o argumento do seu estado de saúde delicado, em 2011, foi condenado a uma pena suspensa de dois anos de prisão por ter feito contratos fictícios enquanto presidente da câmara – um método de financiamento partidário ilícito que continua a dar problemas.
"O último ogre"
Era um político invulgar, “de uma infinita plasticidade intelectual e ideológica”, diz ainda dele o Libération, um jornal francês de esquerda, que lhe chama “o último 0gre da República”. Laurent Joffrin, director deste diário, defende há anos que Chirac é “nunca é tão bom como quando está em campanha. Com um toque de maldade, dir-se-á que nunca é tão mau como quando é eleito”.
Foi um grande actor nos palcos internacionais, influente nas negociações para a adesão de Portugal à União Europeia. Foi o primeiro líder estrangeiro a cruzar o Atlântico para ir mostrar pessoalmente solidariedade com os EUA, uma semana após o ataque terrorista contra as Torres Gémeas de Nova Iorque . Mas teve um papel de contra-poder face aos Estados Unidos, quando lançaram a invasão do Iraque, em 2003, sob o pretexto de que Saddam Hussein esconderia armas de destruição maciça. O primeiro-ministro britânico Tony Blair, que apoiou a guerra, era então, o pólo oposto de Chirac na União Europeia.
Jacques Chirac fez o caminho de um gaulismo reticente em relação à UE para uma posição de europeísta convicto. Mas a Europa que ele defendeu, que incluía o projecto de uma Constituição Europeia, foi rejeitada pela maioria dos eleitores franceses, no referendo de 2005.
Foi, na verdade, um político cheio de contradições, “demasiado humano”, como dizem alguns dos obituários na imprensa francesa. “Generoso e cínico, amistoso e brutal, ingénuo e sagaz, pudico e jovial, mas também culto e secreto”, diz dele o obituário do Le Monde. Chirac tinha tanto de “autêntico republicano como de político desonesto”.
Pompidou como mentor
O seu mentor político foi o primeiro-ministro e Presidente gaullista (conservador) Georges Pompidou, por cuja mão entrou na política. Mas não escondeu o seu apoio ao Presidente socialista François Hollande – simpatias que podem ser explicadas porque ambos partilhavam o mesmo feudo eleitoral, a região da Corrèze, no Sudoeste de França, mas talvez também devido a um velho ódio de estimação em relação a Nicolas Sarkozy, que sucedeu a Chirac, mas que apoiou Edouard Balladour no episódio da “guerra civil da direita”, em 1995.
Dois amigos de 30 anos, Chirac e Balladur, tinham feito um pacto para as presidenciais de 1995: Chirac seria candidato à presidência, e Balladur primeiro-ministro. Mas Balladur, embalado pelas sondagens favoráveis, decidiu candidatar-se também à presidência. Após uma campanha violentíssima, as intenções de voto inverteram-se, e a vitória foi de Chirac, que iniciou os seus 12 anos no Eliseu.
Estavam aqui as sementes da divisão da direita em dois campos, um mais duro e “caceteiro”, concentrado nos temas da segurança – representado por Sarkozy – e outro com preocupações mais sociais –, a que Alain Juppé, ex-primeiro-ministro de Chirac, deu alma nos últimos anos.
Chirac, formado na Escola Nacional de Administração, como a maioria da elite política francesa, que fez o serviço militar na Guerra da Argélia (1956-1957), foi o último Presidente francês que viveu a II Guerra Mundial. Mas teve um caminho muito próprio.
Embora em 1950 tenha assinado, tal como centenas de intelectuais e artistas, a declaração de Estocolmo, apelando “à interdição absoluta das armas atómicas”, recorda o Le Monde, quando chegou à presidência, em 1995, ordenou a retomada dos ensaios nucleares – mas suprimiu-os um ano mais tarde. Foi um dos raros deputados de direita a votar pela abolição da pena de morte em 1981, defendeu o fim da proibição do aborto, e acabou com o serviço militar obrigatório.
Apesar de eleito duas vezes para a presidência, não foi popular: nunca ultrapassou os 20,8% na primeira volta das presidenciais. Em 2002, acabou por ser a opção que restava para os eleitores de esquerda, face ao que parecia inconcebível: a passagem à segunda volta de Jean-Marie Le Pen, o candidato de extrema-direita, e pai de Marine Le Pen, depois de ter derrotado o socialista Lionel Jospin.
A União para uma Maioria Presidencial (UMP), um partido criado para essas eleições, com o objectivo declarado de reeleger Chirac, teve uma longa vida política - só viria a acabar em 2015, quando Nicolas Sarkozy lhe mudou o nome para Os Republicanos. Sarkozy, o ministro do Interior de Chirac, viria a ser o seu sucessor no Palácio do Eliseu, embora Chirac preferisse ter visto como herdeiro Dominique de Villepin, o seu aristocrático primeiro-ministro, que enviou para as Nações Unidas como ponta-de-lança da oposição de França à invasão do Iraque. Villepin foi dado como suspeito em vários casos na justiça, por vezes em conjunto com Chirac, e levantaram-se suspeitas que Sarkozy, ex-ministro do Interior, poderia ter alguma coisa a ver com isso. Intriga, muita intriga...
O último legado a França e à cidade de Paris de Chirac foi o Museu do Quai Branly, um museu das artes extra-europeias, concebido como um local para pensar sobre as relações do mundo ocidental com o resto do mundo.