ASAE apreendeu As Gémeas Marotas em biblioteca de Lisboa no âmbito de processo-crime

Exemplar desta edição para adultos, que parodia os livros do holandês Dick Bruna, estava na Biblioteca Municipal dos Olivais. Na origem da apreensão está um processo-crime por usurpação de direitos de autor.

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A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) apreendeu na terça-feira um exemplar do livro ilustrado As Gémeas Marotas na Biblioteca Municipal dos Olivais, em Lisboa. A apreensão, uma “medida cautelar" desencadeada “somente para preservação de prova”, decorre "de um processo-crime por usurpação de direitos de autor”, confirmou ao PÚBLICO, por escrito, fonte oficial da ASAE. O processo, cujo titular é o Ministério Público (MP), corre no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa e teve origem numa queixa. O MP confirmou a existência de um inquérito, mas não adiantou mais pormenores.

O livro ilustrado As Gémeas Marotas surge assinado por um autor identificado como Brick Duna e apropria, de forma humorística e para adultos, o grafismo e o estilo dos famosos livros para crianças do holandês Dick Bruna (1927-2017), o autor da célebre coelha Miffy. A colecção dedicada à Miffy é editada em Portugal pelas Edições Asa, que serão alheias à queixa enviada ao MP. Fonte da empresa adiantou esta tarde ao PÚBLICO que só agora a editora tomou conhecimento da existência deste livro, do qual deu entretanto notícia aos detentores dos direitos das obras de Dick Bruna, na Holanda.

Além da apreensão realizada na Biblioteca Municipal dos Olivais, em Lisboa, onde o livro estava arrumado na secção de ficção para adultos, três agentes da ASAE visitaram também na terça-feira a livraria Ler Devagar, confirmou ao PÚBLICO o seu responsável, José Pinho. “Vinham apreender o livro, mas infelizmente já não tinha nenhum, porque se venderam todos”, diz o livreiro, acrescentando que o fornecedor de As Gémeas Marotas é uma empresa legal, da qual a Ler Devagar já recebeu outras obras. Dado que o caso está aparentemente na justiça, José Pinho preferiu não identificar o fornecedor do livro, mas acrescenta que entregou à ASAE as facturas do negócio. 

O livreiro calcula que tenha vendido mais de 500 exemplares e só lamenta não ter ficado com nenhum. “Era muito divertido ver as pessoas a olhar para a capa e a dizer: ‘Olha, li isto na infância'”. Mas eram justamente estes clientes que, alertados para o facto de se tratar de uma paródia aos livros de Dick Bruna, acabavam quase sempre por levar para casa As Gémeas Marotas. 

Na sua conta oficial do Twitter, a Câmara Municipal de Lisboa afirmou que “foi feita uma denúncia do caso e os livros estão a ser retirados dos pontos de venda e das bibliotecas”. Contactada pela Lusa, a coordenadora da Rede de Bibliotecas de Lisboa, Susana Silvestre, apenas confirmou a acção da ASAE naquela biblioteca.

A informação da acção da ASAE foi divulgada nas redes sociais na terça-feira e decorreu semanas depois de um artigo de opinião do padre Gonçalo Portocarrero de Almada, no Observador, criticando o conteúdo do livro. “Desconheço o artigo, mas se for a razão, isto parece a brigada dos costumes”, disse José Pinho à Lusa.

O texto de Portocarrero de Almada foi publicado no dia 7 de Setembro, coincidindo com uma polémica que se tornou viral no Brasil com base em fake news: a de que este mesmo livro teria estado à venda na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que decorreu entre 30 de Agosto e 8 de Setembro.

No dia 5 de Setembro, a Prefeitura do Rio de Janeiro, presidida por Marcello Crivella, exigiu aos organizadores da Bienal que recolhessem o livro de banda desenhada Vingadores – A Cruzada das Crianças, que teria, segundo o próprio Crivella escreveu no Twitter, “conteúdos impróprios para menores”. Em causa estaria o facto de uma das ilustrações mostrar dois jovens do sexo masculino a beijar-se.

A direcção da Bienal explicaria nesse mesmo dia ao jornal Folha de S. Paulo que a ordem da Prefeitura não pedia a recolha do livro, ao contrário do que sugeria o tweet de Crivella, mas sim que este fosse inserido num invólucro lacrado com a indicação de que tinha materiais destinados a adultos. Determinação que em todo o caso não cumpriu, argumentando que o livro não tinha conteúdos impróprios ou pornográficos

O caso deu origem a um conflito legal, com o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a dar razão a Crivella e o Supremo Tribunal Federal a determinar que não havia motivos para recolher ou censurar o livro, decisão da qual a Procuradoria-Geral do Rio recorreu. No dia 8, a Folha de S. Paulo noticiava que nesse recurso eram enganosamente incluídas imagens do livro de Brick Duna, que nunca estivera à venda na Bienal. O diário publicou no dia seguinte uma rectificação a explicar que o documento a que tivera acesso era afinal uma versão adulterada do verdadeiro recurso, e que este citava apenas o volume Vingadores – A Cruzada das Crianças.

Mas quando a Folha publicou a primeira notícia, já circulava nas redes sociais brasileiras uma campanha de desinformação que assegurava que As Gémeas Marotas estava mesmo à venda na Bienal, um caso de fake news que vários sites de verificação de factos na Internet foram desmentindo nos dias seguintes.

O livro, que aparentemente só foi comercializado em Portugal, aparece registado na Porbase, o catálogo da Biblioteca Nacional, sem indicação de editor e como tendo sido traduzido por “Maria Barbosa” e impresso em 2012 na gráfica Multitipo, em Queluz de Baixo.

Paródia ostensiva do volume As Meninas Gémeas, de Dick Bruna (1927-2017), publicado pela Verbo em 1984, terá ainda tido outra impressão, possivelmente anterior. Numa nota à sua crónica, o padre Portocarrero de Almada, que manifestamente investigou o assunto a fundo, explica que “também existem, no mercado nacional, exemplares igualmente em português, publicados com autorização de Een Kat in de Zak Kopen BV., Amesterdão, compostos e impressos na Holanda, com data de Dezembro de 1975, mas obviamente muito mais recentes”.

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Não encontrámos referência a esta editora, mas a sua designação é curiosa, já que adopta uma expressão holandesa cujo sentido equivale ao dito português de comprar gato por lebre, que parece bastante adequado a um livro que “vende” na capa umas gémeas de ar inocente, mas que, afinal, se revelarão um tanto ou quanto marotas no miolo do livro.

O leitor começa por ser apresentado às protagonistas: “A Gina é irmã da Gila/, a Gila é irmã da Gina./ A Gina gosta de pila,/ a Gila prefere vagina.// Gina e Gila são gémeas,/ são as duas tal e qual./ Convidaram uns amigos/ para uma tarde especial.” Uma “tarde especial” que, denuncia Portocarrero de Almada, “afinal mais não é do que um indecente bacanal, que envergonharia uma gestora de uma casa de alterne”.

O autor da crónica abre com uma inesperada comparação entre as gémeas reais que, segundo se soube recentemente, teriam sido mantidas em cativeiro pelos próprios pais numa garagem da Amadora e as gémeas de papel de Brick Duna, observando que “anda o país chocado – e bem!” com as primeiras, mas “não seria má ideia” que “também se escandalizasse com outras gémeas que, por serem marotas, são bem piores”. Com Joana Gorjão Henriques e Isabel Coutinho

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