Quem guarda o guardador?

A minha renúncia às funções de juíza-conselheira no TC não foi uma questão de natureza subjetiva ou de mero conflito entre pares, mas uma questão de interesse público, em relação à qual as sociedades têm direito à verdade.

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Miguel Manso

O “juiz relator” é o titular do processo, aquele a quem o processo foi distribuído, por sorteio, e que está encarregado de decidir as questões jurídicas colocadas pelo autor da ação ou pelo recorrente. As decisões judiciais podem ser singulares, quando tomadas por um só juiz, ou colegiais, no caso de estarmos perante um coletivo de juízes, que deve decidir em conjunto, por votação, cabendo ao relator, em diálogo com os membros do coletivo, elaborar a fundamentação do acórdão.

A independência do poder judicial, para além de uma óbvia dimensão externa, apresenta também uma dimensão interna, reportada às relações entre pares.

Para garantir estas duas dimensões da independência, o nosso sistema contém regras processuais específicas consagradas no Código de Processo Civil (CPC), que permitem a mudança de relator, quando este tem uma posição, seja no sentido da decisão, seja nos seus fundamentos, que não é secundada pela maioria.

O Tribunal Constitucional é um tribunal autónomo em relação à hierarquia dos tribunais judiciais. Será, portanto, natural que haja diferenças em relação aos tribunais comuns, justificadas na especificidade do TC enquanto tribunal que decide questões de natureza jurídico-constitucional. Mas essas diferenças, por razões de segurança jurídica, devem ser as que estão consagradas na lei orgânica do TC, devendo, nos casos omissos, aplicar-se o CPC.

Na fiscalização concreta da constitucionalidade das normas, a lei orgânica do TC remete para o CPC, e, se o juiz relator fica vencido, há lugar a mudança de relator.

Na fiscalização abstrata sucessiva, a lei orgânica tem regras próprias, na medida em que a escolha do relator, por sorteio, é posterior à votação do memorando do Presidente e à definição da orientação do tribunal. No sorteio só entram os juízes que compõem a maioria previamente determinada. Sendo assim, em princípio, não será necessário proceder a uma mudança de relator. Mas, no decurso da discussão do projeto de acórdão, que vem a ser apresentado pelo relator ou relatora, podem surgir e surgem, com frequência, posições novas quanto à fundamentação, que criam divergências entre os membros da maioria. A fundamentação será aquela que o relator construir e redigir, na sequência do debate e participação de todos os juízes, que propõem alterações ao texto e escrevem em declaração de voto as suas divergências, caso elas não encontrem reflexo no texto final elaborado pelo relator. É esta normalmente a prática no TC.

É certo que o relator não é o dono do acórdão e deve redigi-lo, tendo em conta as sugestões dos colegas, numa lógica de cedência recíproca, sendo usual que os membros do coletivo façam propostas de alteração ao texto, que devem ser aceites pelo relator, quando subscritas pela maioria e se situem dentro da orientação previamente definida pelo Plenário. 

Mas, no nosso sistema, será insólito que se espere que o relator se autolimite a um papel de reprodução dos fundamentos invocados pelos restantes colegas, e depois coloque em declaração de voto a sua posição, retirando força ao acórdão que subscreveu como relator. Mais insólito será que se possa afirmar ter um coletivo legitimidade para impor ao relator que integre no acórdão textos escritos por outros juízes quanto aos fundamentos da decisão, transformando o relator, afinal, num mero secretário, que nem direito ao seu estilo linguístico tem.

É que mesmo que se entenda que a autonomia do relator, no TC, apresenta limites que não são usuais nos tribunais comuns, não poderá deixar de se admitir que o relator terá que ter, no mínimo, a prerrogativa de escrever o texto do acórdão. Desrespeitar este mínimo, e pretender impor textos escritos por outrem ao relator, é, necessariamente, violar o princípio da participação, em condições de igualdade, no debate democrático.

A omissão da lei orgânica do TC não pode ser preenchida por regras não escritas. Nesta matéria, quem decide é o órgão representativo do Povo, a Assembleia da República, não as práticas de qualquer formação de juízes num determinado momento histórico. Numa matéria tão vital para as democracias, que pode conduzir à asfixia dos juízes, urge perguntar: “Quem guarda o guardador?”

A minha renúncia às funções de juíza Conselheira no TC ocorreu neste quadro. Não se tratou de uma questão de natureza subjetiva ou de mero conflito entre pares, como veiculou alguma comunicação social com base em fontes judiciais não identificadas, mas de uma questão de interesse público, em relação à qual as sociedades têm direito à verdade. Não estou, portanto, a violar qualquer dever de reserva mas a observar um dever cívico de contribuir para a melhoria das instituições.

No processo dos metadados, após a discussão do memorando do Presidente e da definição da orientação do TC, fui selecionada por sorteio para ser relatora. Entreguei projeto de acórdão, de acordo com o que tinha sido decidido no Plenário. É importante sublinhar que nunca fiz, no projeto por mim apresentado, qualquer comparação entre violência doméstica e terrorismo, nem me recusei a proceder a qualquer alteração de redação ou correção proposta durante as sessões. Contudo, o Plenário veio a assumir um outro projeto, resultante de alterações ao que eu tinha apresentado, e em cuja fundamentação, que integrava textos que não foram escritos por mim, não me revia nalguns aspetos que considerei essenciais: a relação entre direito comunitário e direito nacional, e a fundamentação da inconstitucionalidade do artigo 4.º da lei dos metadados na parte relativa aos dados pessoais que não envolvem comunicação intersubjetiva.

Neste contexto, por razões de consciência, declarei que estava vencida em pontos essenciais da fundamentação e solicitei mudança de relator. Contra essa minha pretensão foram invocadas regras consuetudinárias, vigentes no TC, que vedavam, na fiscalização abstrata sucessiva, mudança de relator nos termos do CPC. Não me restou outra hipótese que não a renúncia. 

Por último, tendo participado em todas as sessões em que os aspetos substanciais do projeto foram discutidos, deixei no TC declaração de voto que não veio a ser integrada no Acórdão e que teria permitido, dentro do processo, esclarecer a minha posição.

E a mesma pergunta continua a atravessar a minha mente: Quem guarda o guardador?

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