Batota eleitoral
O resultado das eleições de 6 de Outubro será um Parlamento inconstitucional, ilegítimo e não democrático.
A Constituição impõe um sistema eleitoral proporcional para a conversão de votos em mandatos. Mas, nas eleições do próximo 6 de Outubro, este preceito não será respeitado. E isto porque muitos dos votos expressos, centenas de milhares, são desperdiçados, não são contabilizados na eleição de qualquer deputado no respectivo círculo. O resultado do escrutínio será um Parlamento inconstitucional, ilegítimo e não democrático.
O problema não é novo. Nas últimas eleições legislativas, os deputados do PSD, do PS e do CDS foram eleitos com apenas cerca de 20 mil votos cada; mas já o Bloco de Esquerda precisou de cerca 30 mil e o PCP de 26 mil. O único deputado do PAN necessitou mesmo de 75 mil votos para a sua eleição. Onde está a proporcionalidade se, com o mesmo número de votos, o PS consegue eleger 30 deputados e o Bloco de Esquerda apenas alcança 20? Paradoxal. Para além de que há vários partidos que – apesar de terem muitos mais votos do que os 20 mil que elegeram cada um dos deputados do PS ou do PSD – não estiveram representados no Parlamento. Se tivesse sido garantida a proporcionalidade do sistema, PDR e MRPP teriam tido dois deputados; e até o Livre ou MPT teriam tido assento parlamentar. Estas e outras forças políticas foram extorquidas dos mandatos a que teriam legitimamente direito.
O que motiva afinal esta falta de proporcionalidade? A origem deste enviesamento de proporcionalidade reside primordialmente nos círculos de menor dimensão, onde apenas os maiores partidos elegem deputados e os restantes votos constituem desperdício. Em 14 dos 20 círculos distritais do território nacional, todos eles com menos de dez deputados, habitualmente apenas dois partidos elegem – ou no máximo três. Nesses distritos, todos os votos em todos os restantes partidos são desperdiçados. Se juntarmos os votos (de cada um dos círculos eleitorais do território nacional) nas listas que não elegeram qualquer deputado nesse círculo, verificamos que 509.467 votos foram depositados nas urnas sem qualquer efeito na eleição de deputados. São cerca de 10% dos votantes. A lista mais prejudicada em 2015 por este efeito foi a CDU, que desperdiçou cerca de 90 mil votos, logo seguido do Bloco de Esquerda, que desaproveitou 75.587 votos.
Esta é a consequência da batota eleitoral de que PS e PSD são maiores responsáveis e beneficiários; vêem a sua representação parlamentar hiper-favorecida face ao número de votantes nas suas listas. Incompreensivelmente, Bloco de Esquerda e PCP, apesar de prejudicados, não protestam, tornam-se cúmplices desta trapaça. Talvez porque preferem perder os mandatos a que teriam direito, a ter de conviver na Assembleia da República com o Livre, o PDR ou o MRPP. E é claro que se nem os mais prejudicados querem mudar o sistema, muito menos o pretenderão os mais favorecidos.
Só assim se explica pois que não se adopte uma solução que assegure o sistema de representação proporcional, nos termos consagrados na Constituição Portuguesa. Para tal bastaria uma pequeníssima alteração à Lei Eleitoral, visando criar um pequeno círculo nacional de compensação com 11 ou 12 deputados (5% do total). Este círculo juntaria todos os votos numa única série de quocientes, corrigindo parcialmente a desproporção entre o número de votos e de eleitos. Assim se considerariam todos os votos de forma efectiva, independentemente do círculo eleitoral. Esta solução é, aliás, adoptada nas eleições regionais dos Açores, onde a proporcionalidade é garantida e onde os partidos mais pequenos têm assento parlamentar. Curiosamente, o autor deste aperfeiçoamento da Lei foi Carlos César, então presidente do Governo Regional. O mesmo César que, enquanto líder parlamentar do PS, obstaculizou a sua implementação a nível nacional.
Os resultados decorrentes das eleições de 6 de Outubro estão, à partida, viciados; porque violam os artigos da Constituição que, de forma peremptória, impõem a “representação proporcional” – os artigos 113.º, 149.º e 288.º. Só o Presidente da República, árbitro do sistema, que jurou “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição”, pode impedir, em tempo, esta batotice.