Bonificação por deficiência: basta usar óculos para ter direito?
A posição do Presidente do Colégio de Oftalmologia não está cientificamente documentada. Questiona sem nenhuma razão a letra e o espírito da Lei.
A divulgação de que o uso de óculos por si só daria direito a uma bonificação por deficiência levou a uma corrida aos consultórios de oftalmologia. A mudança do termo “deficiente” para “pessoa com deficiência” representou um avanço no modo como as pessoas com deficiência olham para elas próprias e no modo como a sociedade olha para as pessoas com deficiência. Os pais que submetem o requerimento não têm qualquer problema em alegar a deficiência dos filhos, mas rejeitam em absoluto ou ficam visivelmente incomodados ao dizer que o filho é deficiente.
A terminologia de hoje, entendida num sentido perverso, juntamente com o subsídio atribuído até aos 24 anos pode, porventura, explicar a procura. Os constrangimentos criados aos oftalmologistas levaram a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia (SPO) a emitir uma recomendação de recusa do preenchimento do requerimento sempre que a deficiência não se verifique. O Presidente do Colégio de Oftalmologia (PCO) da Ordem dos Médicos (OM), meu colega e amigo Dr. Augusto Magalhães, num artigo publicado no PÚBLICO, defende que a responsabilidade da corrida em massa aos consultórios é dos funcionários do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSS), porque não lêem o que está no requerimento. Responsabiliza também a lei, ditando que esta é tecnicamente errada. E responsabiliza ainda os políticos e os princípios ideológicos subjacentes à ação política.
Os argumentos aduzidos levam-no a concluir que o Governo tem que decidir se esses apoios devem ou não existir. Conclui também que os médicos não podem ser responsabilizados por atestar a deficiência, conforme afirmou em comunicado o MTSS. A posição do PCO baseia-se em dois fundamentos para isentar os médicos de responsabilidades. O primeiro é que o médico não pode recusar um atestado a quem o solicite. O segundo é que o médico tem que reconhecer a deficiência, mas deve declarar se a deficiência afecta o desenvolvimento da criança e se necessita de apoio especializado. Assim, todos teriam direito a ter o requerimento preenchido pelo médico. Compete depois aos serviços do MTSS avaliar o conteúdo e decidir.
Ora a posição do PCO não está cientificamente documentada. Questiona sem nenhuma razão a letra e o espírito da Lei. E interpreta mal e de forma redutora o código deontológico da OM. Não está cientificamente documentada porque o uso de óculos per se não configura uma deficiência. É possível dar um exemplo que todos perceberão bem: se alguém se sente mais confortável com +0.25 ou - 0.25 dioptrias e usa óculos deve ter direito à bonificação? Todos em uníssono dizemos “não”. Os oftalmologistas estão neste caso obrigados a preencher o requerimento? Segundo o PCO estão.
O PCO põe em causa o Decreto-Lei 133-B/1997 que caracteriza a deficiência para efeitos de bonificação de subsídio familiar. Não tem razão porque o Decreto-Lei não pode ser mais claro. Transcreve o consenso de peritos internacionais expresso na Classificação Internacional de Funcionalidades e Incapacidades (CIF), um documento com a chancela da Organização Mundial de Saúde. Conforme foi explicado no comunicado da SPO, a verificação da deficiência é um exercício de objectividade consubstanciado em numerosa codificação e não deixa margem para apreciações de carácter subjectivo. Consultando a CIF, verifica-se que a caracterização da deficiência faz-se em vários níveis. A classificação de primeiro nível implica resposta aos quesitos descritos no Decreto-Lei 133-B/ 1997 e que estão plasmados no requerimento. A conclusão a tirar é que o legislador obteve a informação científica pertinente antes de elaborar a lei.
Praticamente todas as doenças têm na génese uma deficiência (ou um excesso) seja de natureza enzimática, metabólica, genética ou de outro tipo. A nível molecular, as alterações da função acompanham- se quase sempre de alterações da estrutura. Na interpretação do PCO, se fossemos obrigados a cumprir o que está na lei, poucas doenças ficariam de fora. A definição de deficiência implica a existência cumulativa de alterações funcionais ou estruturais e de alterações no desempenho e na actividade do indivíduo. Anomalias estruturais ou funcionais isoladas não podem ser consideradas deficiências simplesmente porque lhes faltam os outros dois componentes que participam na definição de deficiência. O preenchimento do requerimento pressupõe que o médico constatou que a deficiência está presente. O oftalmologista só tem que caracterizar a deficiência se ela existir. Da leitura da CIF, no que concerne à acuidade visual, retira-se que só há deficiência quando a visão medida com óculos e com os dois olhos abertos for inferior a 20/30. O PCO mais uma vez não tem razão quando invoca o código deontológico da OM para afirmar que o médico tem que passar declarações ou atestados sempre que para isso for solicitado.
Não tem razão porque o médico deve recusar um atestado que não corresponda à verdade.
Na posição do PCO, se solicitado, o médico tem que passar um atestado médico por doença a alguém que não está doente, e só depois afirmar que o requerente não está doente. O que o médico faz, claro está, é recusar atestados de doença quando tal não se verifica.
De igual modo, não se passa um atestado de robustez escrevendo que a pessoa não tem robustez. Recusa-se o atestado quando a robustez não se verifica. O paralelismo com o assunto atinente é total. Os médicos não devem passar atestados só porque lhes pedem. Devem passar atestados que certifiquem a verdadeira situação em que as pessoas se encontram. A posição do PCO, finalmente, não contribui para o esclarecimento público nem contribui para estancar a procura. Ao remeter para os funcionários do MTSS o dever de interpretar um documento médico, ao sugerir que uma lei da República tem que mudar e ao colocar o apoio à deficiência no plano da ideologia, atira o problema para as calendas. Pelo contrário, a SPO defende uma posição que não depende de outrem. Limita-se a recomendar que os médicos devem recusar passar o atestado de deficiência quando tal não se verifique.
A leitura deste artigo pode levar a pensar que existe um litígio entre a SPO e o PCO, o que não é verdade. A relação entre as duas Instituições é perfeita e converge na posição de que é necessário acabar com as bonificações indiscriminadas. Os meios propostos para atingir esses objectivos é que são diferentes.