Call-centers: defender os trabalhadores nas novas dinâmicas do trabalho
Não podemos aceitar que más práticas manchem todo um sector e não admitimos que ele se mantenha como uma espécie de lado negro das relações laborais em Portugal.
As novas dinâmicas do trabalho assalariado têm vindo a provocar mudanças profundas na estabilidade das relações laborais, mas também na relação de cada trabalhador com o contexto (físico, técnico, ambiental) do seu espaço de trabalho, existindo muitas vezes uma justaposição entre a degradação das condições para o trabalho e a precarização das relações em que ele se exerce ao nível da flexibilização, desregulação e baixos salários.
Aquilo que podemos designar como sector dos call-centers enquadra-se neste contexto de transformação da nossa sociedade e dos padrões de trabalho da nossa economia. Quase sem expressão até à integração europeia, os call-centers foram crescendo como resposta a novas necessidades das empresas e dos nossos hábitos de consumo, à relação das empresas com os seus clientes (em especial, banca, seguros e telecomunicações, mas também grande distribuição) e ao incremento da informatização, da desmaterialização e da terceirização.
Paralelamente, as leis laborais foram acomodando respostas a estas mudanças, permitindo que empresas se especializassem no fornecimento de trabalhadores para call-centers, muitas vezes em regime de outsourcing ou trabalho temporário, ou permitindo que as empresas-mãe que contratassem directamente o pudessem fazer com ampla flexibilidade de horário, tempos de qualidade e composição das parcelas salariais.
Os call-centers empregam hoje mais de 80 mil trabalhadores, mas a verdade é que conhecemos muito pouco sobre eles, sobre a forma como trabalham estas pessoas, quanto recebem, que tipo de contratos têm, qual o seu ambiente de trabalho, que problemas e doenças resultam da sua actividade ou quantos precários existem.
Todavia, há factos que são inegáveis pela natureza da actividade. O trabalho na maioria dos call-centers é exercido de forma ininterrupta por longos períodos de tempo em cada jornada, com implicações na duração e qualidade das pausas, mas vai muito para além disso. Há características estruturantes do trabalho nos call-centers que dia após dia após dia após dia originam rotinização, uniformização e desgaste psicológico, com grande exigência física e emocional: segmentação e especialização de tarefas repetitivas, controlo do número e tempos dos atendimentos, divisão entre o planeamento e a execução das tarefas e a pouca autonomia de decisão por parte dos trabalhadores, incluindo simples idas à casa de banho.
Mais: ao mesmo tempo que o volume de negócios do sector triplicou entre 2016 e 2017 para os quase 300 milhões de euros, o salário médio baixou 23 euros, o que é especialmente incompreensível. É preciso substituir este modelo onde mais lucro corresponde a menos salário por um modelo com mais justiça e mais redistribuição num sector onde não existe nenhuma convenção colectiva.
Respondendo a uma petição do Sindicato dos Trabalhadores dos Call-centers com cerca de 5000 assinaturas na legislatura que agora termina, a Assembleia da República debateu a profissão e reconheceu a sua especial penosidade. O PS, em particular, apresentou um projecto de resolução para que seja efectuado um estudo elaborado pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, no sentido de conhecer os espaços onde estas actividades são exercidas, as relações laborais estabelecidas, as condições de higiene e segurança, a ergonomia, o respeito pelas normas de descanso e a estabilidade dos horários, entre muitas outras dimensões.
Queremos mudar esta realidade e para isso precisamos de saber onde é que estão as más práticas, identificá-las, isolá-las e criar condições para que sejam eliminadas, evitando legislar a partir de uma base desconhecida e pouco escrutinada.
Não podemos aceitar que más práticas manchem todo um sector e não admitimos que ele se mantenha como uma espécie de lado negro das relações laborais em Portugal, porque isso não é justo, não é digno e não corresponde à visão de competitividade em que acreditamos que a nossa economia deve assentar.
É um tema que não deixaremos cair na próxima legislatura.