Entre a China e o Trump: II (com Hong Kong pelo meio)
“Detesto investimentos chineses. Não trazem management, nem know-how nem coisíssima nenhuma”
Alexandre Soares dos Santos, 2014
Há cerca de três meses após a espécie de embargo encetada pelos EUA à Huawei, considerei aqui que por mais que me custasse ver alguém como Trump elevado a paladino e defensor da liberdade, interessava perceber o que significavam empresas com a força global de uma Huawei, dominadas pelo estado chinês. O que representa esse mesmo Estado. E o que é esse grande sonho chinês cuja hegemonia tantas vezes foi prometida ao longo da história e que tantas vezes se esfumou?
Resumidamente, é todo um sistema em que passamos para segundo plano. O ser humano em função da tecnologia e não o reverso. O homem em função da máquina e não o contrário. Amanhã, o homem em função dos robôs e não o oposto. Assustador, não é?
Não acredito em nenhuma grande história carecida de humanidade, e mais, desconfio demais da tecnologia sem ela. Nem hoje, nem em nenhum futuro mais ou menos longínquo.
Mas, na realidade, nunca existiu momento tão propício para que essa hegemonia chinesa se materializasse de forma plena. A ocidente, uma parte da Europa refém de governos e ameaças extremistas que põem em causa os seus próprios valores fundacionais, sem que saiba defendê-los convenientemente ou reforçá-los, enquanto procura manter-se competitiva nas várias frentes. Um presidente americano que além de tudo o mais, roça esse próprio extremo e demonstra um desprezo constante por muitos dos valores conquistados.
Mas (e aqui o, “mas” é gigante) é também um presidente que se tem mostrado hábil economicamente e por isso tem feito a diferença. Em tempos bastante mais complexos e difíceis, levou para toda uma outra escala (se é justa em todos os aspetos, será matéria de um terceiro artigo) a guerra comercial com a China. Nenhum dos seus antecessores levou-a tão longe.
Trump tem com ele neste tema grande parte do senado republicano e democrata americano que largou qualquer visão esperançosa de um regime de Xi Jinping minimamente responsável, respeitador dos direitos humanos, ou das regras de comércio internacional.
Nesta guerra comercial existe uma estratégia nítida da administração americana que é a de procurar uma contenção da China no longo prazo. Naturalmente, em benefício próprio dos Estados Unidos. Pelo caminho, pode e deve sobressair o mercado livre das sociedades liberais e democráticas, com o iminente retrocesso do gigante asiático. Os índices da economia americana têm ido ao encontro desta estratégia de forma mais acentuada do que era esperado, enquanto a chinesa se mantém em queda contínua.
A grande prova para o regime comunista chinês, com mais de um século e sem nunca demonstrar qualquer abertura cultural e política, será a forma como lidará com a questão de Hong Kong. Um tema em cima da agenda global que funciona a favor dos Estados Unidos. Ou do mundo, mesmo que isso possa ferir certas suscetibilidades. Como qualquer grande potência, o crescimento sustentado chinês depende do comércio exterior, potenciado de sobremaneira pela nova rota da seda e que se encontra cada vez mais ameaçada e dependente dos desenvolvimentos em Hong Kong.
Podem ser ingénuas as esperanças de uma nova China através da pressão externa e que se deixe levar pela atratividade dos valores e de alguns modelos políticos ocidentais.
Como sugerem as próprias manifestações de Hong Kong, a mudança na China só poderá vir de dentro.
Uma coisa é certa: o comportamento do regime chinês aqui ditará grande parte da sua força futura. Algo parecido a Tiananmen, afetará não só a sua imagem global e a economia, como colocará em causa a ascensão dos últimos anos. Uma eventual abertura testada através de um jogo de paciência, indiciará uma outra postura mais positiva, mas que terá de acarretar com outras consequências internas e obrigará a todo um conjunto de regras democráticas a que o regime não estava habituado. As mesmas que colocarão em causa muita da eficiência em diversas áreas.
O presidente americano já joga com isso tudo.
Não deixa de ser irónico (ou brilhante, depende do ponto de vista) que a administração do populista mor, Donald Trump, possa ter desempenhado um papel tão determinante em travar o poder maior das últimas décadas de um regime totalitário no mundo (possivelmente, o seu único grande feito). Fê-lo sempre em benefício próprio e sem qualquer preocupação com os acontecimentos em Hong Kong, por exemplo, mas desse resfriamento e perda de influência global do modelo chinês, não são só os valores ocidentais que podem sair reforçados. Os próprios chineses e o continente asiático agradecem.
É que é legítimo questionar se as manifestações de Hong Kong teriam existido sem a guerra comercial entre os EUA e a China e se os seus ecos teriam as repercussões que têm hoje. Parece-me óbvio que não.
A União Europeia que anda meia sonâmbula neste tema e aprende pouco com algum do pragmatismo americano, perdeu como sempre a dianteira e restar-lhe á ir a reboque mais uma vez.
Portugal bem pode começar a diversificar o investimento no país. Já o dizia Alexandre Soares dos Santos.