À precariedade o que é da ciência, à ciência o que é da precariedade: que futuro?
A ciência e o ensino superior continuam a operar no quotidiano à custa de um manto de trabalho precário.
Pre-ca-ri-e-da-de, substantivo feminino
Qualidade do que é ou está precário; condição do que é instável, inseguro, frágil ou contingente [1]
Anualmente, o Eurostat publica um rácio que, grosso modo, nos transmite a precariedade vigente em determinada economia. Basicamente, numa média anual, temos a proporção de pessoas com contrato a prazo (a termo certo ou incerto) na globalidade do mercado laboral. Isto é, em 1000 empregos no mercado de trabalho, uma taxa de 30% significará a existência de 300 postos de trabalho a prazo, os quais existem para suprir necessidades temporárias com contratos de duração limitada no tempo. Chamemos-lhe, pois, simplificadamente, a taxa de precariedade laboral.
De acordo com a mesma fonte, durante o anterior executivo (PSD/CDS), esta taxa subiu mais de dez pontos percentuais (54,6% de 2011 ou 52,6% de 2012), que compara com 63,9% em 2015. Já com o atual executivo em funções, apesar da redução de mais de dois pontos percentuais em três anos, a taxa manteve-se acima dos 60% (61,1% em 2018) – assim, de repente, soa a poucochinho. Aliás, tomando como referência o ano de 2018, a taxa de precariedade laboral em Portugal encontra-se mais de 20 pontos percentuais acima da média dos 28 países da UE (40,9%). Neste particular, ficamos no pódio da precariedade no espaço europeu, apenas suplantados pela Eslovénia (61,5%) e Espanha (67,1%).
Em vésperas de eleições legislativas, é bom lembrar a ‘precariedade’ que os programas eleitorais transportaram num passado recente. É que nos programas eleitorais para as legislativas de 2015, a palavra precariedade é citada 22 vezes pelo PS (num total de 92 páginas), sendo citada 24 vezes pelo PCP (num total de 83 páginas), cinco vezes pelo BE (em 68 páginas) e apenas uma vez pela coligação PSD/CDS designada por “Portugal à Frente” (em 148 páginas). O flagelo da precariedade – em 2015, a taxa de precariedade laboral em Portugal estava mais de 23 pontos percentuais acima da média dos 28 países da UE! – esteve, e bem, na agenda dos partidos de esquerda nos respetivos programas eleitorais de 2015. Contudo, o Governo PS, talvez alheado do seu programa e/ou ignorando os sucessivos apelos dos partidos à sua esquerda que viabilizaram o executivo até final, não colocou em prática uma verdadeira estratégia de combate à precariedade.
Os números demonstram-no e, por exemplo, as palavras de António Costa assim o confirmam quando se pronuncia sobre a ineficiência de um dos instrumentos para combate à precariedade na ciência e ensino superior – o Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (Prevpap). Segundo declarações de António Costa no Ciência 2019, os resultados do Prevpap nas carreiras especiais do ensino superior “manifestaram-se desadequados para resolver as situações de precariedade (que é necessário resolver) seja na carreira docente, seja na carreira de investigação”. No ar fica uma singela questão: de quem será a responsabilidade do sucedido? Os leitores mais atentos à impunidade que grassa no nosso cantinho dirão que a responsabilidade será das marés, as quais, teimosamente, sobem e descem, ou, porventura, da Lua que nos calhou em sorte.
Voltando à Terra, também no domínio da ciência e ensino superior, o programa eleitoral do PS de 2015 referia que “a consolidação do ensino superior como motor de progresso futuro depende ainda de políticas públicas estáveis, consensualizadas e focadas no desenvolvimento científico do País e na sua crescente abertura e relevância internacional (…)”.
Dito isto, os últimos dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), reveladores da precariedade no ensino superior, remontam ao ano letivo 2015/2016 – aliás, seria interessante perceber a razão pela qual esses dados deixaram de ser publicados nos anos subsequentes pela DGECC. Em 2015/2016, considerando a figura de Professores Visitantes ou de Assistentes enquanto docentes com contrato a prazo, a maior parte do corpo docente do ensino superior politécnico público era precária (mais de 52% do total), sendo inferior no ensino superior universitário público (perfazendo cerca de 31% do total). Perante tão pitoresco cenário, os resultados do Prevpap na ciência e ensino superior, que decorrem dos dados do Observatório de Emprego Científico de 24/06/2019, são elucidativos do seu logro: em média, em cada 100 proponentes (precários) ao Prevpap, apenas foram aprovados para regularização dez docentes e nove investigadores.
Permitir-me-ão um parêntesis no domínio da investigação, ainda que, tal como António Costa, “não querendo fazer de cientista”, talvez seja mais fácil encontrar água num qualquer deserto à vossa escolha do que um investigador de carreira em Portugal (ao abrigo da Lei n.º 157/99, de 14 de Setembro).
Adiante. Uma vez que o PS encarava o “ensino superior como motor do progresso futuro”, o Governo não se ficou pelo Prevpap no ‘combate à precariedade’, lançando o Programa de Estímulo ao Emprego Científico e chamou a si a redação do Decreto-Lei 57/2016 e da Lei 57/2017. De resto, as aspas simples assentam sempre bem quando aludem à ausência da expressão inerente.
Apesar do exposto, muitas bolsas passaram a contratos a termo certo, com a decorrência inerente do usufruto de direitos sociais há muito sonegados, e alguns docentes e investigadores viram melhorada a sua condição contratual (de precária para indeterminada no tempo).
As “políticas públicas estáveis”, apregoadas pelo programa eleitoral do PS no domínio da ciência e ensino superior, ficaram na gaveta ou, eventualmente, terão os responsáveis governativos interpretado a precariedade enquanto fator constante ao longo do tempo, porquanto terá de ser indefinidamente ‘estável’ entre nós, docentes e investigadores? Refletirão “políticas públicas estáveis” o saltitar de bolsa em bolsa ou o pular de indefinição em indefinição? Ora, facilmente se constatará que o “ensino superior como motor de progresso futuro depende” do… futuro. Se, à direita, não desagua Rio de estabilidade laboral para quem hoje trabalha na ciência e ensino superior, à esquerda muito há a fazer neste domínio. Não bastam programas eleitorais repletos de flores, cuja exequibilidade, na legislatura agora finda e da estrita responsabilidade deste Governo, ficou muito aquém da proposta inicial. A verdade é que a ciência e o ensino superior continuam a operar no quotidiano à custa de um manto de trabalho precário.
Se há quem encare, e bem, a ciência e ensino superior enquanto motores de progresso futuro, a precariedade vigente deixará antever que os problemas de hoje serão os mesmos de amanhã e, decerto, a engrenagem toldará o propalado progresso futuro.
Independentemente da cor política que se seguirá, o próximo Governo tem de reconhecer a precariedade como um flagelo de que padece a nossa economia e de tomar medidas efetivas para a combater no terreno, não apenas na ciência e ensino superior mas também nos demais setores da economia, do público ao privado. Estamos saturados de medidas feitas de e no papel, bem como de frases jeitosas que, no concreto, de nada valem. Afinal, “autoritárias, paralisadoras, circulares, às vezes elípticas, as frases de efeito, também jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, são uma praga maligna, das piores que têm assolado o mundo” (José Saramago, em A Caverna).
[1] Infopédia – Dicionário da Porto Editora
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico