Urbanismo

Lisboa tem uma extraordinária tradição histórica de mistura social que torna as cidades energéticas. Estes e outros projetos deveriam mobilizar uma nova fase de trabalho da câmara.

Enquanto a política cultural da Câmara de Lisboa tem estabelecido uma forte relação com associações étnicas e de bairro, revalorizando museus, galerias, espaços públicos, e criando uma nova dinâmica com populações desprotegidas, a política urbana tem agravado as assimetrias sociais da cidade. A demissão de Manuel Salgado cria a oportunidade para corrigir essas assimetrias.

Lisboa nunca esteve tão bem no que diz respeito à recuperação e preservação de edifícios. O número de edifícios arruinados tem sido reduzido, contribuindo para uma visão normalizada da cidade, onde a pobreza dos bairros antigos deixou de ser tão visível. Contribui para o turismo, que gosta do lado pitoresco, sem ter que se confrontar com o lado miserável.

Contudo, esta mudança tem tido enormes custos sociais. A população com menos recursos financeiros dos bairros antigos – Bairro Alto, São Paulo, Madragoa, Madalena, Alfama, Mouraria – tem vindo a ser sucessivamente desalojada. O investimento na recuperação urbana é feito por não residentes, que alugam a estrangeiros via Airbnb. Os bairros estão a ficar sem população residente com todas as consequências óbvias: redução drástica da população escolar, logistas, eleitores.

O relativo vazio legislativo, que se procurou corrigir muito recentemente, deixou marcas profundas de especulação imobiliária que será difícil inverter. É preciso dizer que foi justamente a população desfavorecida que fez o Bairro Alto dos anos 80 e 90. Estavam ali inseridos; a diversidade étnica e social teve forte impacto cultural. Hoje em dia isso seria impossível: não há geração jovem no Bairro Alto. Os investimentos são estereótipados e dirigidos exclusivamente a turistas. A cidade antiga está a perder a alma.

Há dois anos dormi num apartamento Airbnb no Bairro Alto, Rua da Atalaia. Não podia ter corrido pior: o ruído da rua era insuportável. Não dormi toda a noite e na manhã seguinte abandonei o apartamento. Contrariamente ao Booking.com, o Airbnb cobra à cabeça no momento da reserva. Recuperar dinheiro é virtualmente impossível, implica gravação e atestação de ruido. A proteção do consumidor é nula, na altura nem pagavam impostos, um negócio do far-west

O protesto dos residentes desfavorecidos tem sido evidente. Basta ler os grafitti. Na altura em que fiz a experiência Airbnb vi uma série deles bem vocais, lembro-me de um em Alfama, escrito em inglês: ‘F..k Airbnb! We want to live here'.  

A política do Golden Visa, lançada em 2012, conjugada com os cortes de impostos para estrangeiros reformados, contribuiu para esta vaga de recuperação com ejeção dos residentes pobres. O problema é que poucos estrangeiros se tornam verdadeiros residentes: alugam os apartamentos que compram via Airbnb. A vida dos bairros da zona antiga da cidade parece renovada, com novas lojas, muito delas de ótimo design, complementadas por excelentes livrarias temáticas. Mas tudo isto está largamente baseado no poder de compra dos turistas. Se houver uma crise todo o sistema entra em colapso.

Lisboa contrasta com Madrid, onde a renovação urbana tem sido feita por residentes. Na minha última estada de pesquisa na Biblioteca Nacional de Espanha fiquei no bairro de Chueca, que era um bairro degradado com prostituição. Agora está completamente recuperado, com bares, restaurantes, lojas originais. Tudo isto é sustentado pela população residente, há poucos turistas. Aliás, Madrid passa por uma fase de extraordinária energia interna. Percebi melhor o declínio de Barcelona e os impactos diferenciados do turismo.

Nos anos 60 e 70, Henri Lefebvre teve um papel fundamental na compreensão da revolução urbana, que se seguiu na Europa aos períodos formativos da cidade medieval e moderna, com uma nova lógica de produção do espaço, interação entre espaços de trabalho e lazer, bairros residenciais e bairros de serviços, redes de comunicação, sinalética e novos equipamentos. Ele chamou a atenção para a importância de uma regulamentação do investimento urbano, de maneira a evitar assimetrias sociais. O seu livro mais importante é Le droit à la ville

A escola de Chicago, com Robert Park, chamou a atenção para a interacção entre o indivíduo e o grupo num quadro urbano específico, enquanto Foote White publicou um livro notável, Street Corner Society, onde analisou o bairro italiano pobre de Boston no início dos anos de 1940 através da sociabilidade da geração jovem nas esquinas de ruas. Lembro-me de ter brincado às escondidas com outros miúdos na Avenida da Liberdade e de jogar ao futebol na rua por trás do cinema São Jorge, hoje em dia impensável.

A sociologia urbana mais recente tem chamado a atenção para os espaços urbanos como espaços férteis, de encontro e troca de ideias, que tornam impossível a localização das empresas tecnológicas fora dos grandes centros. Não é por acaso que os novos escritórios da Google em Londres estão no extraordinário bairro criado nos últimos cinco anos por trás de King's Cross e St. Pancras, perto do Eurostar. A revolução urbana é agora mundial, a competição passou a outro nível, é por isso que Londres e as grandes cidades britânicas atraem população de todo o mundo e são cosmopolitas, contra a vasta maioria do ‘interior’ que vota pelo “Brexit”.

Lisboa tem uma extraordinária tradição histórica de mistura social que torna as cidades energéticas. O Bairro Alto sempre teve população pobre misturada com a população rica, como acontecia com a Lapa, a Graça ou mesmo a Avenida da Liberdade. Lisboa foi caracterizada por Damião de Góis no século XVI como uma barriga de peixe que vivia ligada ao rio e ao mar. A expansão para o interior começou nas últimas décadas do século XIX com a Avenida da Liberdade, seguida na primeira metade do século XX com Campo de Ourique e as avenidas novas. Estas zonas da cidade são as que resistiram melhor ao último impacto especulativo: a classe média está bem enraizada nesses bairros e soube manter os edifícios.

O problema é o esvaziamento de população desfavorecida nos bairros antigos, que descaracteriza e desvitaliza a cidade. O problema é também de integração dos bairros periféricos, onde populações de diferentes origens étnicas mostram uma enorme criatividade com pouquíssimos recursos. Deveriam ser objecto de programas inter-institucionais. Quando fui diretor da Biblioteca Nacional visitei a New York Public Library, que tem delegações em todos os bairros, sobretudo nos bairros mais pobres, onde trabalha em coordenação com escolas em vastos projetos educativos de enorme impacto.

A recuperação da diversidade social na Lisboa antiga exige legislação consistente: novos projetos urbanos deveriam ter cotas para pessoas de baixo rendimento, tal como os projetos de reabilitação. A população vulnerável e os artesãos deveriam protegidos. O Airbnb não deveria ser autorizado sem os moradores serem ouvidos. As horas de ruido deveriam ser limitadas. Estes e outros projetos deveriam mobilizar uma nova fase de trabalho da Câmara de Lisboa.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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