Boris “Banksy” Johnson: génio ou vândalo?
Por muitas mentiras sobre a União Europeia que Boris Johnson tenha escrito nos seus tempos de correspondente do Daily Telegraph em Bruxelas, o novo primeiro-ministro britânico nem sempre esconde o que o faz avançar na política.
Os mais antigos ainda se recordam dos tempos em que nenhuma visita ao médico chegava ao fim sem que um presunto bem curadinho ou uma bela e luzidia chouriça saísse da sacola do paciente directamente para a secretária do senhor doutor.
As pessoas mais inteligentes e sofisticadas, que vivem nas grandes cidades e frequentam museus nos tempos livres das suas importantíssimas vidas, olhavam para aquele ritual como uma marca de subdesenvolvimento cultural — aquilo a que os sociólogos chamam, em linguagem técnica, a saloiice.
É verdade que a oferta de presuntos, de enchidos e de garrafas do melhor vinho do mundo lá da aldeia sobreviveu à chegada da televisão digital terrestre (“Para todos os portugueses!”), mas não é menos verdade que o ritual sofreu um golpe na consistência, tão profundo como os guiões da última temporada da série A Guerra dos Tronos.
Vem isto a propósito, como os leitores mais perspicazes deduziram a partir das primeiras palavras deste texto — ainda que a fotografia que o acompanha seja enganadora —, de Boris Johnson.
Ou melhor, da forma como o novo primeiro-ministro britânico consegue deixar tantas pessoas inteligentes e sofisticadas rendidas à sua suposta superioridade intelectual.
Um dia destes, um antigo ministro português disse na televisão digital terrestre (“Para todos os portugueses!”) que Boris Johnson “será, provavelmente, o primeiro-ministro mais culto na Europa de hoje em dia”, uma vantagem determinante para um participante do programa Quem Quer Ser Milionário, mas de utilidade ainda não comprovada para o exercício de um cargo político na Europa de hoje em dia.
No outro extremo, há quem acredite naquela versão apressada e mal-amanhada da fascinante curiosidade humana que é o Facebook, segundo a qual Boris Johnson é mais parecido com Donald Trump do que o guião da série La Casa de Papel com o argumento do filme Infiltrado, de Spike Lee.
Ora, tirando da frente a tão interessante questão de saber se Johnson é Trump ou Da Vinci — agora que tudo e todos, à excepção do gato de Schrödinger, tem mesmo de ser só uma coisa ou outra —, tudo se resume a presuntos, a enchidos e ao melhor vinho do mundo lá da terra oferecidos ao senhor doutor.
Só que, no caso de Boris Johnson, é ele quem oferece os presuntos bem curadinhos aos senhores doutores inteligentes e sofisticados, na forma de tiradas muito cultas sobre os mais variados assuntos, proferidas a um ritmo ainda mais alucinante do que a velocidade com que muda de ideias sobre os mesmos variados assuntos.
(Para não sermos injustos, há perguntas a que Boris Johnson responderia sempre da mesma forma, com um claro e inequívoco “sim”; só é pena que uma delas seja “Boris, deve o Reino Unido ficar ou sair da União Europeia?”)
“Assim que descascamos tudo, não encontramos lá nada”, diz o director do site politics.co.uk, Ian Duncan, num texto sobre o novo primeiro-ministro britânico. “É essa a derradeira punchline de Boris. É como irmos numa aventura em busca de um tesouro escondido e encontrarmos uma daquelas almofadas que emite sons.”
Ian Duncan é duro demais com Johnson; a verdade é que o novo primeiro-ministro britânico só entrega os seus presuntos aos senhores doutores porque eles também ficam fascinados com outras coisas muito importantes e sofisticadas, como a chegada de um Warhol à cidade.
E não é por falta de aviso. Por muitas mentiras sobre a União Europeia que Boris Johnson tenha escrito nos seus tempos de correspondente do Daily Telegraph em Bruxelas, e que tenha dito sobre a imigração durante a campanha a favor do “Brexit” (anos depois de se ter candidatado à Câmara de Londres com a imagem de um conservador moderado e multicultural), o novo primeiro-ministro britânico nem sempre esconde o que o faz avançar na política.
(Uma pista: não é a defesa intransigente de convicções políticas próprias.)
“Como táctica na vida, muitas vezes é útil dar a ligeira impressão de que estamos deliberadamente a fingir que não sabemos do que estamos a falar”, disse Boris Johnson numa entrevista. “Porque se não soubermos mesmo do que estamos a falar, nesse caso as pessoas não vão conseguir perceber a diferença.”
Há quase um ano, a jornalista britânica Martha Gill pediu aos seus leitores que “não sobrestimassem a inteligência de Boris Johnson”. Para ela, o político “só tem um truque, que é ser Boris”.
Um truque “que ele usou sempre para distrair as pessoas dos seus falhanços como político”.
Se não fosse isso, diz Martha Gill, “há muito que ele teria sido corrido da vida pública, por causa dos seus graves erros como político e como jornalista”.
Mas o Reino Unido, a Europa e as pessoas inteligentes e sofisticadas não têm nada a temer: Boris Johnson será, provavelmente, o primeiro-ministro mais culto na Europa de hoje em dia.