Precisamos de falar sobre a transparência
Em vez de se assumir que a divulgação de informação é em si mesma positiva e transformadora, é necessário mais diálogo e debate público e político sobre a transparência e sua relação com a democracia, os mercados globais e o poder. Precisamos mesmo de falar, todos, sobre transparência.
A questão da transparência está na ordem do dia, em Portugal e na Europa.
A nível europeu, as estatísticas agora divulgadas pela Comissão Europeia revelam que no ano de 2018 houve um número recorde de pedidos de visualização de documentos por parte dos cidadãos, representando um aumento de aproximadamente 9,5% relativamente ao ano anterior. Na verdade, desde a entrada em vigor do regulamento CE n.° 1049/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, que confere o acesso público a documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão Europeia, que os pedidos têm vindo a crescer ano após ano. Há, portanto, um crescendo na procura de informação por parte dos cidadãos sobre as instituições europeias, ou, se quisermos, um maior exercício do seu direito a saber.
A nível nacional, a atual polémica gerada em relação à lei das incompatibilidades é o mais recente exemplo de que ainda há muito a fazer sobre esta questão da transparência.
Mas mais do que a urgência em mudar uma lei que, não obstante os problemas eventualmente inerentes à mesma, se percebeu agora (e só agora!) que a ser aplicada incomodaria muita gente no poder, é necessária uma reflexão, e essa sim urgente e profunda, sobre a transparência. É urgente refletir acerca das razões pelas quais não se trata apenas de um nem de dois casos de incompatibilidades que vêm agora à superfície. E era importante ter refletido mais prolongadamente sobre se a nova lei e a transparência consignada na mesma serão suficientes para promover uma maior responsabilização e a adoção de comportamentos mais éticos por parte das elites no poder. E esta reflexão tem de ser feita também de forma transparente, ou seja, através de um debate público sobre a transparência e sua relação com o direito a saber, mas também com o poder (público e privado), a responsabilização, a ética e a confiança dos cidadãos nas instituições e no sistema.
Na verdade, a transparência tem-se transformado numa norma e num princípio de boa governação, frequentemente associada à democracia, à participação dos cidadãos e da sociedade civil e à responsabilização. Mas trata-se de um conceito ambíguo e complexo, com múltiplos significados, indicadores e lógicas. Se o foco tem sido em geral dado à informação e ao acesso e qualidade da mesma (o que alguns autores chamam de “transparência de primeira ordem”), tal pode não ser suficiente para promover nem a participação dos cidadãos, nem a responsabilização dos atores públicos e privados. É necessário uma “transparência de segunda ordem”, ou seja, um maior enfoque nas instituições e não apenas na informação, de modo a potenciar uma análise sistemática das questões dos interesses, da ética e da responsabilização. Tal supõe olhar seriamente para a questão da transparência em relação aos dinheiros públicos e para o modo como estes têm sido utilizados, por exemplo, para salvar os bancos. Implica também uma tentativa séria para resolver a questão dos offshores e para perceber porque razão apenas 40% das sociedades, trusts, fundações e cooperativas entregaram até agora o registo do beneficiário efetivo obrigatório para todas as entidades constituídas em Portugal ou que aqui pretendam fazer negócios.
Em vez de se assumir que a divulgação de informação é em si mesma positiva e transformadora, é necessário mais diálogo e debate público e político sobre a transparência e sua relação com a democracia, os mercados globais e o poder. Precisamos mesmo de falar, todos, sobre transparência.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico