Sobre a “independência intrajudicial” no Tribunal Constitucional Português
É erróneo qualificar o relator, como faz Bacelar Gouveia, como o “dono do texto do acórdão”. Muito menos se lhe pode atribuir “o direito de fazer impor a sua vontade sobre o seu discurso” aos outros juízes.
Este jornal, na sua edição de 28 do corrente, publicou um artigo de Jorge Bacelar Gouveia, intitulado “Mais um caso de ‘asfixia democrática intrajudicial?’”
Nesse artigo, o autor comentou a noticiada renúncia de uma juíza do Tribunal Constitucional (TC) e as causas que a terão motivado.
Nele se expendem considerações que podem induzir em erro a opinião pública, quanto à participação (e à liberdade) de cada juiz no processo coletivo de elaboração dos acórdãos do TC. As linhas que se seguem visam proporcionar aos leitores interessados uma base de apreciação ajustada ao regime e à prática da atividade jurisprudencial daquele órgão.
1. Nos processos de fiscalização abstrata sucessiva, como é o processo sobre os metadados que corre termos no TC, o texto inicial, que serve de base à primeira ronda de debate no plenário, é um memorando apresentado pelo presidente. Esse texto responde às questões de constitucionalidade suscitadas no pedido de fiscalização, propondo normalmente uma solução para elas, e formulando, pelo menos em esboço, a respetiva fundamentação.
Cada um dos juízes pronuncia-se livremente sobre esse texto, num processo dialógico por vezes muito prolongado no tempo. Quando é entendido que todos firmaram uma posição definitiva quanto ao sentido da decisão, procede-se à votação, para apurar se o tribunal declara ou não a inconstitucionalidade da norma em juízo.
Feito isto, é designado, de entre os membros do plenário que votaram favoravelmente a decisão, um relator do projeto de acórdão, através de sorteio que obedece a um programa informático. A esse relator, respeitando integralmente a orientação que obteve apoio pelo menos maioritário, cabe aprofundar o memorando, integrando no texto do projeto, designadamente, o que tiver resultado do debate preliminar sobre o memorando.
O projeto é submetido à discussão do coletivo dos juízes, cada um dos quais pode propor a reformulação dos termos de certos pontos da fundamentação, a adição de novos argumentos ou referências ou a eliminação de alguma ou algumas das considerações que constam do projeto. Cada uma das questões de fundamentação, no caso de as propostas de alteração não obterem adesão unânime, é submetida a votação.
2. Os acórdãos, por definição, são decisões coletivas. O conceito denota uma sentença em que os juízes subscritores “se manifestam de acordo” quanto à posição jurisprudencial que nela se fixou.
É, assim, erróneo qualificar o relator, como faz Bacelar Gouveia, como o “dono do texto do acórdão”. Muito menos se lhe pode atribuir “o direito de fazer impor a sua vontade sobre o seu discurso” aos outros juízes. O acórdão, qualquer acórdão, reflete a posição do tribunal, sendo o seu texto, independentemente da identidade do relator, imputável ao conjunto dos juízes que subscrevem essa posição, pela qual todos, por igual, são responsáveis.
Nestas circunstâncias, impõe-se, naturalmente, como regra de razão prática para formação da decisão coletiva, um ajustamento das posições individuais, com cedências recíprocas naquilo que não é tido por essencial, em busca, sempre que possível, do máximo denominador comum. Nenhum relator pode pretender ser tratado como o criador exclusivo de um texto que traduza, palavra por palavra, o que pensa e o modo como julga mais apropriado exprimi-lo.
3. Mas esta sujeição à lógica procedimental própria dos trâmites de um processo de formação da vontade coletiva de modo alguma significa, pelo menos no caso dos acórdãos do TC, a “asfixia” da liberdade individual de apreciação das questões em juízo. Ela manifesta-se, desde logo, no contributo que cada um presta para a posição que o TC virá a tomar, num debate estritamente regido pelas regras da livre e igualitária participação democrática. Em caso de dissídio quanto ao sentido da decisão, qualquer juiz pode exprimir a sua posição própria, em declaração de voto por si subscrita, a publicar conjuntamente com o acórdão (faculdade que algumas instâncias homólogas, como, por exemplo, o Tribunal de Justiça da União Europeia, não contemplam). Mais ainda. Qualquer juiz, incluindo o relator, que se desvie do teor da fundamentação, num ponto por si tido como fundamental, pode formular uma declaração, publicitada nos mesmos termos do acórdão, dando conta, para o exterior, dessa posição individual.
Como se vê, não há espaço para qualquer dúvida de que a “independência intrajudicial” dos juízes do TC está devidamente salvaguardada. São, pois, deslocadas as considerações, em contrário, que o autor faz.
Realmente, se “a vida judicial nunca pára de nos surpreender”, não menos nos surpreende certos comentários que sobre ela se tecem...
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico