Bonifácios e Malefácios, eis a questão
Se a opinião de Fátima Bonifácio, julgada como “crime”, fosse condenada em tribunal, o seu efeito censório seria brutal na sociedade portuguesa.
Nestas querelas de posições públicas, matéria de opinião, um ponto fundamental é sempre o de saber se representam por si mesmas um benefício ou um malefício. E, caso se discorde fortemente de afirmações feitas, outro ponto fundamental é determinar se o modo por que se reage e responde é benefício ou malefício. Por regra, numa sociedade livre e democrática, qualquer debate aberto (bilateral ou multilateral) é um benefício. Já o modo por que se reage nem sempre é um benefício. E pode ser grande malefício.
Os jornalistas António Borga, Diana Andringa, José Augusto, José Mário Costa e Paulo A. Monteiro, em resposta ao meu artigo O Bonifácio da Dúvida, apresentaram um conjunto de normas da Lei de Imprensa e da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a fim de sustentarem o seguinte: “É esta toda a diferença entre Censura Prévia e sanção penal.” Fizeram-no como integrantes do grupo de 14 pessoas que anunciou uma queixa-crime contra Maria de Fátima Bonifácio e o artigo Podemos? Não, não Podemos.
Conheço estas normas. A primeira Lei de Imprensa, a seguir ao 25 de Abril, previu o crime de abuso da liberdade de imprensa. O entendimento era simples: abolida a censura, reposta a liberdade de imprensa, cabia sancionar a posteriori abusos que ocorressem, o que se confiava aos tribunais. O mais frequente era a difamação, crime já previsto na lei penal. A lei hoje em vigor resultou da evolução do pensamento jurídico em duas décadas, que eliminou o tipo específico do “crime de abuso de liberdade de imprensa”, passou a articular com a lei penal geral e definiu os responsáveis e uma agravação das penas. Quanto ao princípio da Declaração Universal, decorre de outra ideia mais ampla, aplicável em diversos casos: o exercício de um direito ou de uma liberdade tem como limite os direitos e a liberdade dos outros. Também está certo.
A tutela penal não significa que não haja censura. Pode acontecer, pela intimidação provocada, que o recurso à tutela penal tenha propósito ou efeito censórios. Tudo depende do contexto, do uso da ferramenta penal, da sua frequência e intensidade e da jurisprudência que se estabeleça, assim como do entendimento social que se gere. Nenhuma lei vive apenas na frieza seca do seu normativo – e este tipo de leis muito menos.
Tivemos em Portugal vivos debates sobre a legitimidade deste instrumento e seus limites. Apesar da progressiva afinação dos critérios de aplicação, vários jornalistas e responsáveis da comunicação social protestaram contra processos judiciais que os visavam ou a colegas seus, sustentando que eram pressões censórias e visavam “impor a mordaça”. Para sairmos do quadro nacional, recordemos casos muito sonoros em Angola: jornalistas levados à barra dos tribunais sob acusações de difamação. Pode achar-se que era coisa banal, comum a diferentes ordens jurídicas; mas esses processos mereceram condenação internacional como “perseguição”, por vários colegas de profissão e credenciadas organizações de direitos humanos. Esta é a questão.
Lendo a breve narrativa que o director do PÚBLICO fez, em Editorial, quanto à enxurrada de críticas, indignações, protestos recebidos contra o artigo de Fátima Bonifácio, percebemos que a maioria pretendia que o PÚBLICO fizesse censura. Esse é, aliás, o sentido das leis ora invocadas, que, nalguns casos, responsabilizam penalmente “o director, o director adjunto, o subdirector ou quem concretamente os substitua, assim como o editor”: em contexto de cultura penal furibunda, fomenta-se a censura. A ameaça da sanção penal não só não afasta a censura prévia, como pode precisamente conduzir a ela: por autocensura do autor ou até como autodefesa, por censura imposta pelos responsáveis editoriais – em ambos os casos, tendo como critério... o medo.
O quadro legal ficou substancialmente pior – e muito perigoso para a liberdade – quando, ao naipe de crimes mais comuns com vítima precisa (difamação e injúria), se juntaram os crimes de ódio, contra universos gerais e difusos. São crimes de linguagem, uma tendência internacional moderna, perigosa para a liberdade e para a cidadania, sobretudo quando se banaliza o seu tipo, permitindo que incidam em casos que não são de ódio.
A procuradora Aurora Rodrigues, integrante do mesmo grupo dos 14, juntou – e bem – a norma jurídica fundamental neste caso: o artigo 240.º do Código Penal. Fê-lo no seu artigo (que creio ser-me parcialmente dirigido) sobre a mesma questão e intitulado O Eufemismo do Excesso ou o Excesso dos Eufemismos?
É muito grave que, como Aurora Rodrigues conta, este artigo 240.º (Discriminação e incitamento ao ódio e à violência) preveja a punição por “difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas”, mas tendo eliminado, em passe de magia, na revisão em 2017, a exigência expressa do dolo específico para este tipo de crime, que constava desde a versão inicial de 1995: desde que “com a intenção de incitar à discriminação (...) ou de a encorajar”.
Ou seja, a estreia judiciária desta versão-garrote do preceito foi anunciada para o caso Bonifácio. Por isso, eu disse ter curiosidade em observar o curso dos processos e, ainda, de ver também como decidiria o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, se o caso lá chegasse. É só para saber em que país e sociedade vivemos. Sociedade liberal? Não. Se a queixa tivesse vencimento, não mais seria liberal. Se a opinião de Fátima Bonifácio, julgada como “crime”, fosse condenada em tribunal, mesmo constatando que não tinha a intenção de incitar à discriminação nem de a encorajar, caber-lhe-ia, ainda assim, a pena do artigo 240.º do Código Penal, agravada de um terço pela Lei de Imprensa: ou seja, cadeia de oito meses a seis anos e oito meses. Além da flagrante injustiça desproporcionada de uma tal condenação, o seu efeito censório seria brutal na sociedade portuguesa. Então, nós arriscamos outra vez cadeia por participar num debate e emitir opinião emotiva?
A partir desse dia, saberíamos que, em matérias sensíveis do debate social e político, passaríamos a estar numa rua estreita de sentido único: só lá cabem os que pensam a partir do poder e de uma determinada maneira. Em debates nas áreas do artigo 240.º, uma opinião vibrante, um argumento vigoroso, uma posição acalorada poderiam ser apreendidos – em vez de argumentados – e sujeitos à sentença do tribunal. Um jogo em que, a cada movimento ousado de um dos lados, o árbitro apita penálti e exibe o cartão encarnado. Isto fomenta o extremismo, não combate o extremismo.
É por isso que manifestei estranheza em ver aqui não só activistas, mas também jornalistas e procuradores. Não é por não terem base legal. É porque, aos jornalistas, me habituei a vê-los do outro lado da barricada e, aos procuradores, creio que a sociedade fica mais segura quando também estão desse lado.
Respeitando as opiniões em contrário dos que me interpelaram, reafirmo o essencial. A célebre frase atribuída a Voltaire – “Não concordo com nada do que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres” – seria muito diferente se a autoria fosse deste movimento judiciário: “Não concordo com nada do que dizes e defendo até a morte o direito de te amordaçar e punir.”