Trump
Quer seja reeleito ou não, a verdade é que Trump mudou tudo. E esta mudança não se cinge aos Estados Unidos. É uma mudança global. Um mundo novo está a começar.
Terça-feira, 8 de novembro de 2016, o dia em que Donald J. Trump venceu as eleições para a presidência dos Estados Unidos da América, foi o evento político mais disruptivo desde a queda do muro de Berlim. A eleição de Trump marca o começo de uma nova era.
Desde que tomou posse, Trump está a desmantelar, peça por peça, o sistema criado no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Do equilíbrio de poder que marcou a Guerra Fria ao consenso de Washington em termos económico-financeiros, passando pela última utopia das nossas sociedades – o regime de direitos humanos tal como construído e imaginado desde os anos 70 que veio progressivamente ocupar o espaço deixado em aberto pelas grandes Utopias e ideologias que havíamos herdado do século XIX – tudo Trump coloca em questão. Trump, o herege-mor, não respeita os princípios e as normas mais básicas e fundamentais do consenso liberal que se forjou, não sem reservas e sobressaltos, no Ocidente depois de 1945. Quanto mais detestáveis as suas ações, mais eficazes são em destruir tudo à sua volta. Quanto mais ignóbeis as suas palavras, mais irreversível se torna o ponto de viragem que teve início em Novembro de 2016.
A conta de Trump no Twitter é uma janela para este admirável mundo novo. Com cada tweet racista, Trump cauciona formas de pensar e agir que sustentaram uma das páginas mais negras da nossa história – a página do colonialismo. Com cada tweet machista, Trump abre caminho para formas de pensar e agir que, por um breve momento, acreditámos ingenuamente que havíamos ultrapassado de vez. Com cada tweet nacionalista, Trump dá uma machadada na crença numa ordem global democrática, justa e tolerante.
O contexto em que Trump floresceu é uma América crescentemente desigual e cada vez mais enredada em “guerras culturais”. Mas, por si só, o contexto não chega. Uma coisa é a existência de um segmento conservador na sociedade americana, em que o racismo e a misoginia tendem a prevalecer proporcionalmente mais do que noutros segmentos. Mas para que estas preferências individuais se transformem em causas políticas é necessário serem trabalhadas politicamente. O que explica o seu sucesso eleitoral em 2016, e as linhas mestras da sua presidência até ao momento, é a forma como Trump tem explorado politicamente o ressentimento de segmentos do povo americano por relação, desde logo, aos oito longos anos de Obama na Casa Branca. Parte deste ressentimento é cultural: refere-se à insegurança que certas camadas da população branca sentiram ao ver um afro-americano na presidência do seu país. Outra parte deste ressentimento é material: a desigualdade económica que cresce desde os anos 80 não deixou de aumentar com Obama, o que, conjugado com o mal-estar identitário, levou a que muitos americanos tivessem rejeitado votar em Hillary Clinton – a candidata da continuidade com o status quo – e acabassem por apoiar uma mudança política radical.
A exploração política do ressentimento é o que define o populismo. O populismo é um jogo de elites contra elites, em que vence quem conseguir canalizar os ressentimentos de uma parte do povo (“nós”) contra outra parte (“eles”). É um jogo não entre inimigos, mas entre rivais em competição por recursos materiais e simbólicos. Quando “eles” ganham, “nós” perdemos. Nós nunca perdemos por culpa própria. Só perdemos porque as regras do jogo estão contra nós. Este é um jogo em que Trump se tem mostrado exímio. Este jogo não é sobre programas políticos a longo prazo ou esquemas ideológicos complexos. Não é sequer sobre a resolução, efetiva e permanente, dos problemas na origem do ressentimento democrático. É um jogo que vive no imediatismo do presente. É um jogo em que cada vitória ou derrota acontece no “aqui e agora”, não num futuro distante a alcançar com muito esforço e dedicação.
Trump não vai resolver nada. O que Trump tem feito e vai continuar a fazer é destruir o status quo que ele vê como um espartilho às suas opções de vida. O seu animus é negativo, conflitual. O que o anima é romper com o senso comum dominante (sobretudo o discurso politicamente correto), violar normas de conduta, desrespeitar formas de pensar diferentes da sua. Os problemas económicos e sociais que o levaram à presidência vão continuar sem resposta. Mais a mais, o excelente desempenho da economia americana, como se sabe, pouco ou nada tem a ver com a ação do Presidente, fosse este Trump ou Clinton. Quer seja reeleito ou não, a verdade é que Trump mudou tudo. E esta mudança não se cinge aos Estados Unidos. É uma mudança global. Um mundo novo está a começar.
Os Romanos tinham um deus para celebrar os começos: Jano. Com as suas duas faces, Jano olha simultaneamente para o tempo que passou e para o futuro que está a despontar. Hoje há, por um lado, quem olhe para trás e queira resgatar o mundo do pós-guerra e os seus consensos. Esse mundo, porém, acabou. O questionamento profundo desse mundo que Trump representa é irreversível. Os “deploráveis” não são apenas “deploráveis”, que o são. São, antes de mais, uma das faces duma nova ordem social e política que está a despontar, uma ordem menos liberal, menos internacional, menos tolerante do que aquela que herdámos. Por outro lado, há quem tente encontrar aspetos positivos em Trump e nas suas políticas. E, entre estes, até há quem não resista a integrar a expressão pública de preconceitos entretanto tornada “normal”.
Ambos os caminhos conduzem a lado nenhum. Ou nos conduzem de regresso a uma era que, apesar de todos os progressos, já não volta, ou nos levam para um mundo menos aberto e mais intransigente. Aprendamos antes com Jano. Qualquer começo é intrinsecamente ambivalente. Está entre um passado que não volta e um futuro que ainda não aconteceu. Neste momento de passagem entre o ontem e o amanhã, o hoje escreve-se sem grandes certezas. A única certeza que podemos ter é que qualquer certeza no progresso inexorável da Humanidade é um mito. É, pois, sem certezas, mas certos da necessidade de começar de novo, que teremos de começar a imaginar e construir um mundo pós-Trump. Será, provavelmente, uma das tarefas mais difíceis das próximas décadas. Por isso mesmo, será uma das mais importantes.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico