SNS e eleitoralismo
No plano eleitoral a Lei de Bases da Saúde é uma magnífica tábua de salvação para o PS, o BE e o PCP.
Estamos decididamente em ambiente de pré-campanha. O exemplo mais claro é a aprovação da nova Lei de Bases da Saúde (LBS). Quando tudo indicava que iria chumbar, fruto da encenação das negociações que atingiu níveis intensos de dramatização, eis que, num passe de mágica, Governo, PS, BE e PCP tiram o coelho da cartola, que é como quem diz, tiram do diploma as parcerias público-privadas (PPP).
A dimensão de espectáculo de mágica estende-se à plateia. Assim como nunca ninguém sabe o que acontece ao coelho que sai da cartola do prestidigitador, agora ninguém consegue perceber bem o que afinal vai acontecer às PPP. Ficarão numa espécie de limbo legal. Não existem na lei de bases que enquadra o sector público da Saúde, mas funcionam na realidade, sendo enquadradas legalmente por um decreto do Governo de Durão Barroso que obedece a um espírito legislativo oposto e contraditório ao da nova lei de bases.
A aprovação a mata-cavalos antes das legislativas, ainda que na prática não vá servir para nada no que diz respeito ao quotidiano dos utentes do Serviço Nacional de Saúde, tem um imenso e importante efeito eleitoral para os seus negociadores e vai funcionar na perfeição no discurso de campanha eleitoral do PS, do BE e do PCP.
No plano institucional e legal, a LBS aprovada cria um novo enquadramento de tipo macro para o sector, que no futuro terá novos parâmetros de gestão com o Estado a ter um papel mais central, podendo ser travada a roda livre em que os interesses dos investidores privados se movem e lucram. Mas na prática e no imediato nada resolve no quotidiano da Saúde, da carência de médicos de família às imensas listas de espera. Nem mesmo a falta de um rolo de papel higiénico num centro de saúde ou num hospital – este exemplo não é uma ironia, já ouvi relatos de centros de saúde e de hospitais em que médicos, enfermeiros ou auxiliares levam de casa o papel higiénico.
No plano institucional e legal, a Lei de Bases da Saúde é uma magnífica tábua de salvação para o PS, o BE e o PCP. Catarina Martins e Jerónimo de Sousa podem partir para campanha a alardear a vitória de terem obrigado o PS a dobrar a espinha e a travar os seus “desvios de direita”, de cedência ao neoliberalismo e aos interesses dos negócios privados na Saúde pública. BE e PCP poderão gritar aos ventos do cimo do palco dos comícios que Portugal agora têm uma “verdadeira” LBS de esquerda, que foi reposto o “espírito de Abril” na Saúde pública, que os negócios e o lucro à custa da doença foram travados, que o SNS irá regressar ao seu espírito inicial e fundador de 1976. Isto, claro, porque eles estavam lá e se bateram em nome do interesse nacional.
O PS vai também cantar vitória e respirar aliviado, já que pode propagandear a ideia de que o seu Governo, liderado pelo secretário-geral, António Costa, conseguiu mais uma habilidade – fez o acordo político para resolver os problemas da Saúde pública. No futuro, claro e sobretudo, se os eleitores lhes derem uma “maioria absolutamente inequívoca”. Graças à tenacidade do líder do PS foram criados novos critérios para a gestão do SNS. Costa pode entrar em campanha passando ao eleitorado a ideia de que se está a agir para resolver os problemas do sector público da Saúde. E, com isso, esvaziar o ambiente de crítica sobre o estado do SNS que lhe pode criar erosão eleitoral.
E quanto às PPP? As PPP são aquela espécie de cavalo no meio da sala que nem PS, nem BE, nem PCP vão querer ver para não estragarem a festa. Por agora, ficam adiadas, suspensas, congeladas. Ao adiar o que os dividia e impediria a aprovação da lei de bases, PS, BE e PCP criaram uma espécie de esquizofrenia legislativa.
De um lado, uma lei de bases que enquadra o sector público da Saúde em novos pressupostos políticos e doutrinários em que o Estado é o centro do sistema, é quem gere, decide e manda e em que os privados entram no jogo apenas com carácter suplementar.
Do outro lado, as PPP que existem – Cascais, Vila Franca de Xira e Loures –, por agora, são enquadradas por um decreto-lei de 2003, do Governo de Barroso, e que obedece ao espírito da LBS de Cavaco Silva, segundo o qual o Estado até deve apoiar os privados a instalarem-se no sector da Saúde.
Do habilidoso acordo faz parte a decisão de adiar por seis meses a discussão político-parlamentar sobre as PPP. O problema foi temporariamente varrido para debaixo do tapete, como lixo indesejado. Ninguém percebe muito bem o que lhes vai acontecer. Continuarão a existir em roda livre em contradição com o espírito da nova lei de bases e os governos a fazê-las a seu bel-prazer? Haverá espaço político e geometria parlamentar que permita debatê-las e enquadrá-las no espírito da nova lei de bases? O BE não a aprovará. Catarina Martins dixit. Mas até lá o habilidoso acordo serve que nem uma luva aos interesses eleitoralistas do PS, BE e PCP.