Manter tradições, uma partilha de cada vez

Do toque dos adufes à cozedura da cerâmica, o YouTube, o Facebook e o Instagram dão vida a um património cultural antigo.

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Yagi Studio/Getty Images

É comum Amélia Mendonça, 72 anos, receber mensagens no Facebook de fãs que querem aprender a tocar adufe. “Adufeira desde pequena”, tem por hábito partilhar fotografias, lendas e vídeos sobre os tambores, que também vende numa pequena loja de artesanato em Monsanto.

Na rede social, é conhecida por D. Amélia. “Felizmente, há muitos jovens interessados no meu trabalho. E a minha página tem-me permitido conhecer pessoas de todo o mundo que vêm de propósito cá à loja. Tenho mais de mil amigos virtuais”, diz com orgulho.

Foi a mãe que a ensinou a tocar quando era mais nova. “Nunca me esqueci e quando me aposentei, precisava de ter algo com que me entreter”, explica. A página do Facebook surgiu para chegar a mais pessoas. “Sempre gostei das novas tecnologias e sempre trabalhei com computadores”, recorda. “Quando deixei o meu trabalho na segurança social, tínhamos começado a usar o email para tudo. Não queria deixar aquele mundo.”

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Fotografia de perfil na página do Facebook de Amélia Mendonça

Hoje, a maioria das mensagens que lhe chegam são pedidos de ajuda sobre o adufe. “É um instrumento que engana muito. Parece fácil de tocar, mas não é. Há uma forma certa de agarrar para o som. E cada terra tem o seu jeito”, diz.

D. Amélia não é um caso único. As plataformas online, incluindo o Facebook, o Instagram e o YouTube, têm ajudado a preservar costumes e a organizar comunidades em torno de tradições como tocar adufe, bordar, fazer vasos de cerâmica ou fabricar sabão.

A investigadora Filomena Sousa, especializada em memória imaterial, afirma que o papel da Internet como “ponto de contacto” na difusão de tradições e costumes tradicionais é fundamental. A académica é uma das coordenadoras do projecto Memoriamedia, um museu digital que expõe e partilha vídeos, documentários e estudos sobre património cultural imaterial. Isto inclui expressões orais, saberes, e artes performativas, como danças tradicionais.

Porém, Filomena Sousa ressalva que é importante ir além das redes sociais: “[A Internet] nunca se substitui ao enriquecimento e prazer do contacto directo com as expressões culturais protagonizadas pelas comunidades no devido contexto. Óptimo é se essa mediatização estimular a vontade de ver, ou até mesmo de participar nas tradições.”

Muitas pessoas encontram D. Amélia através da página de adufes de Rui Silva. A viver na ilha do Pico, há quatro anos que dá aulas de adufe através do YouTube, WhatsApp e Skype (são 15 euros por hora). Contrariamente a D. Amélia, descobriu o adufe tarde.

Estava na Grécia, a meio de um mestrado sobre instrumentos de percussão, quando lhe perguntaram sobre o instrumento tradicional português. “Zero. Não sabia nada de adufes. Não sabia sequer como agarrar. Fiquei até com vergonha...”, recorda Rui. “Quando voltei a Portugal, convenci-me a corrigir o problema e fui aprender com as adufeiras da Beira Baixa.”

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Rui Silva a dar uma aula por Skype Adufes Rui Silva

Recordações das avós

Rui decidiu usar várias plataformas (além do Facebook, tem uma conta no Instagram, um site e um canal no YouTube) para juntar conhecimento sobre as diferentes formas de tocar. Pelo caminho, aprendeu a fabricar adufes, que vende online. Além de estrangeiros, as páginas atraem portugueses que se lembram das avós a tocar quando eram crianças, e que querem aprender.

Filipa Carneiro, 36 anos, também criou as suas páginas de tricô, croché e costura nas redes sociais para ajudar pessoas a recuperar os hábitos das avós. “Eu cá sempre fiz estas coisas. Tricô, croché, bordado... Aprendi em criança, com a minha avó Lina e na escola – estudei num colégio que ainda tinha o hábito de ensinar estas coisas às meninas –, mas nunca deixei de gostar. Só que não partilhava. Experimentava sozinha em casa”, diz Filipa Carneiro, engenheira civil de formação. Criou o blogue quando estava em licença de parto: “Tinha mais tempo. Criei a página para ensinar amigos, primeiro, e depois uma comunidade.”

Hoje, gerir a página do YouTube, o site e o Instagram, e fazer algumas publicações para revistas especializadas é um trabalho a tempo inteiro.

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Filipa Carneiro Bruno Mendes/Facebook

Ocasionalmente, também partilha tutoriais de fabrico de sabão. “Percebi que as redes sociais permitem simular as comunidades de antigamente. Antes, as coisas eram mais partilhadas. As pessoas falavam sobre novas receitas que descobriam, reuniam-se ao final do dia para mostrar técnicas de costura… Isso perdeu-se nas cidades, mas as redes sociais permitem de certa forma recuperá-las.”

No início só publicava em português. Com o interesse de fãs do estrangeiro, começou a escrever em inglês – mas só no Instagram. “É onde os estrangeiros vão mais. Há muito interesse na técnica de tricô português, o chamado portuguese knitting, em que se usa uma linha ao pescoço. Na versão de tricô inglês ou de tricô continental, a linha agarra-se na mão direita ou esquerda, respectivamente.”

Ceramistas do Instagram

Célia Macedo, de 38 anos iniciou-se na técnica da cerâmica em 2016, quando estava a completar o doutoramento em Arquitectura em Oxford, no Reino Unido. “Queria ter um hobby fora do trabalho, que desse para me distrair, para fugir à rotina. Pelo caminho, apaixonei-me”, diz. “A comunidade de ceramistas do Instagram é ‘muito apertada’. Somos unidos e conhecemo-nos quase todos.”

Recentemente voltou a Portugal para se dedicar a tempo inteiro ao artesanato e aprender com “os grandes mestres da olaria”. Pelo caminho, quer apresentá-los à comunidade de oleiros internacional: um dos objectivos do Instagram de Célia é mostrar o trabalho por detrás de cada peça, através de vídeos e fotografias. “É preciso perceber que a peça demora tempo a ser pensada, a ser feita, a secar, a tirar o barro em excesso, a ir ao forno várias vezes… São semanas para se fazer uma peça”, explica.

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Célia Macedo partilha o que aprende com os mestres oleiros na sua página do Instagram

Sabe que as redes sociais não são perfeitas – nunca teve problemas, mas conhece vários casos de colegas burlados com clientes que não pagam –, mas acredita que os pontos positivos se destacam. “Tenho pessoas com quem posso tirar dúvidas de outro ponto do mundo. E tenho clientes na Grécia e nos EUA. Não estaria onde estou hoje se não fossem as redes sociais”, acrescenta. “E quero dar a conhecer o trabalho diário dos mestres.”

É algo que a investigadora Filomena Sousa considera fundamental. “Nenhuma acção de salvaguarda ou divulgação (online ou outra) terá importância caso a tradição perca o seu significado junto das comunidades praticantes”, diz a investigadora. “Se não se garantir a sua prática, no contexto que lhe é próprio, perde-se a tradição, perde-se o património vivo”.

Para Filipa Carneiro, a página do Facebook dedicada ao tricô contribui para isto. “Em Portugal tem uma abrangência enorme, porque junta netas, filhas, mães e avós”, diz. “Mas são as senhoras portuguesas com mais idade, reformadas por norma, que mais participam. É comum ouvi-las: ‘Filipa, mostras isto de uma forma muito moderna. Antigamente não era assim.’ Mas isto permite gerar uma conversa”, explica. “Por norma, há nomes diferentes para técnicas em diferentes aldeias e terras, e assim passam a ter uma linguagem comum.”

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Filipa Carneiro começou a organizar aulas presenciais

É uma opinião partilhada pela adufeira Amélia Mendonça: “Antes estava-se muito isolado. A Internet muda isso e permite partilhar tradições com o mundo. Nas redes sociais, é preciso não entrar em políticas. E partilhar coisas boas, positivas. É preciso saber usar a Internet, porque serve para impedir que as tradições morram.”

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