O delírio de António Barreto
António Barreto tem direito à sua opinião, como eu tenho à minha. Mas as pessoas já perceberam. Não vale a pena agitar fantasmas imaginários nem inventar guerras para justificar soluções de excepção
Há dias, neste jornal, no artigo “Justiça e democracia”, António Barreto anunciou aflito que a justiça está toda em guerra: juízes sindicalizados e não sindicalizados lutam uns contra os outros; juízes e procuradores detestam-se, rivalizam em poderes e tentam atropelar-se; juízes de diversas instâncias perseguem-se e – a cereja do bolo – magistrados de direita e esquerda, com ligações pessoais e políticas ao poder, exibem nos processos divergências com origens ocultas. Onde estão os factos que suportam isto, que ninguém tinha visto com tanta clareza? Não interessa. Um delírio absoluto, sem ponta por onde se pegue.
A luta entre juízes sindicalistas e não sindicalistas é um disparate. Uma associação sindical com 2223 membros (descontando os jubilados, são 81% dos 2231 dos juízes no activo), que fez recentemente 10 dias de greve, com níveis de adesão entre 63% e 90% e que tem 45 anos de história de união e convergência, prova exactamente o contrário.
A guerra entre juízes e procuradores é outro desatino. As estruturas associativas que representam estas profissões não têm qualquer atrito há muitos anos, reúnem periodicamente, realizam iniciativas comuns e estão juntas na plataforma “Justiça e Tribunais”, com outras profissões forenses, e na MEDEL, com as associações europeias de juízes e procuradores. Ninguém ouviu um juiz apoucar as pretensões do Ministério Público na revisão do seu estatuto, nem o inverso. E nos processos também não há guerra nenhuma, nem tem de haver convergência ou articulação. Era o que mais faltava. Os juízes são independentes e decidem em consciência sobre os interesses representados pelos procuradores do Ministério Público e pelos advogados; umas vezes a favor, outras contra. Há aqui alguma anormalidade? Se é isto a guerra, estamos conversados.
A perseguição entre instâncias judiciais é mais um desacerto. Sempre houve recursos e decisões de primeira instância revogadas por tribunais superiores, até, por vezes – mal; muito mal – com linguagem exagerada e imprópria. É moda dizer que a “relação arrasou o juiz fulano”, mas quem consegue ver o que se passa nos tribunais, para além dos títulos bombásticos, sabe que isso não é mais que o sistema de recursos e controlo de erros judiciais a funcionar. Igual ao que sempre aconteceu, embora com mais visibilidade por causa da natureza dos casos.
Logo a seguir começa a perceber-se onde os factos delirantes nos querem levar. Como há juízes de esquerda e direita à bulha nos processos, por causa das suas ligações pessoais e políticas, os casos de Sócrates, Salgado, Pinho, Vara, Mexia, Vale e Azevedo, Duarte Lima, Bava, Berardo e Jardim Gonçalves, talvez não estejam entregues “em boas mãos”. Lá está, se certas pessoas não forem incomodadas pela justiça, está tudo bem. Mas assim, com tanta gente importante a poder acabar na prisão, se calhar não vamos lá. É melhor começarmos a “pensar em maneiras capazes de reforçar o escrutínio da justiça”; que é como quem diz – lá vamos nós outra vez – mexer na composição dos conselhos superiores – esses órgãos que, sem a mão de ferro dos políticos, deixam a rebeldia corporativa em roda livre.
O absurdo da lógica da tese da partidarização da justiça nos processos dos “famosos” desmonta-se muito facilmente: se o juiz condena uma pessoa do partido A, é porque gosta do partido B; logo, a única maneira de despartidarizar o juiz, é ele absolver toda a gente que tenha a mais leve conexão com a política. Fácil!
António Barreto tem direito à sua opinião, como eu tenho à minha. Mas as pessoas já perceberam. Mesmo com a crónica falta de meios e as pedras que todos os dias são postas no caminho, a justiça está a funcionar e a chegar onde antes não tinha ido. Por isso, não vale a pena agitar fantasmas imaginários nem inventar guerras para justificar soluções de excepção. É tudo muito claro e há três coisas que todos já sabemos: uma, é que nos próximos 10 anos muitas pessoas importantes vão acabar na cadeia, se vierem a provar-se os crimes de que estão acusadas; outra, é que a única maneira de acabar com esse “excesso de Estado de direito” é limitar os poderes daqueles que insistem em cumprir a sua função com independência dos interesses políticos e económicos; e a última, é que o povo já topou isso e não se deixa enganar facilmente.