Polícia pôs fim à invasão do Parlamento de Hong Kong com gás lacrimogéneo
Centenas de manifestantes ocuparam a câmara principal do Conselho Legislativo, no dia em que se comemoram 22 anos da transição do território para a China. Teme-se onda de repressão nos próximos tempos.
Os protestos em Hong Kong contra várias decisões do Governo local, acusado pelos críticos de agir de acordo com as instruções de Pequim, atingiram esta segunda-feira o ponto mais tenso de sempre, quando centenas de manifestantes armados com barras de ferro destruíram a protecção de vidro reforçado do Parlamento e invadiram o edifício. Lá dentro, escreveram mensagens nas paredes da câmara dos deputados, pintaram de negro o símbolo oficial e desfraldaram bandeiras do Reino Unido e de Hong Kong nos tempos do domínio britânico.
Depois de uma primeira atitude passiva, que causou estranheza junto dos líderes dos protestos, a polícia de choque decidiu entrar no edifício e lançar gás lacrimogéneo, para fazer dispersar os manifestantes. Às primeiras horas da manhã de terça-feira (são mais sete horas em Hong Kong que em Portugal continental), o South China Morning Post noticiava que o prédio já estava “desimpedido”. Mais de 50 pessoas ficaram feridas, segundo as autoridades médicas.
Tanto a invasão e ocupação do Conselho Legislativo, como o dia em que isso aconteceu, são símbolos da luta maior que está por trás dos protestos das últimas semanas: há 22 anos, no dia 1 de Julho de 1997, o território de Hong Kong passava a ser administrado pela China.
Durante a tarde, centenas de manifestantes que saíram de uma marcha pacífica nas ruas de Hong Kong, em protesto contra as comemorações do 22.º aniversário da transição, juntaram-se às portas do Complexo do Governo Central e começaram a tentar destruir a primeira barreira de protecção do edifício do Parlamento.
Ao fim de várias horas, já de noite, as investidas contra o vidro reforçado, com um carro de transporte de material de armazém, surtiram efeito. Centenas de pessoas entraram no edifício, quase todas com a cara tapada, capacetes negros e empunhando guarda-chuvas (o símbolo do movimento pró-democracia), sem que a polícia de intervenção tivesse agido.
Não há explicações oficiais para a passividade da polícia de choque perante a invasão do Conselho Legislativo de Hong Kong, nesse primeiro momento.
Num comunicado, 41 deputados fiéis ao Governo do território condenaram os “actos extremamente violentos e radicais” protagonizados pelos manifestantes mais jovens, e elogiaram a polícia pela sua “contenção”.
Um dos rostos da oposição, o deputado Fernando Cheung, do Partido Trabalhista, disse que as autoridades “montaram uma armadilha” aos manifestantes, ao permitirem a invasão do Parlamento. Para Cheung, o Governo e a polícia têm agora uma justificação pública para reprimirem os opositores.
No mesmo sentido, o jornalista James Griffiths, da CNN Internacional, disse no Twitter que “o sentimento público já estava a começar a virar-se contra os manifestantes mais jovens”, e que a invasão do Conselho Legislativo vai “selar essa condenação”.
As cenas no interior da câmara principal do Parlamento, transmitidas pelas televisões e através das redes sociais, quase deixavam sem palavras os convidados dos programas de canais como a BBC ou a Al-Jazira.
A partir de Londres, o ministro dos Negócios Estrangeiros e candidato ao cargo de primeiro-ministro do Reino Unido, Jeremy Hunt, deu o seu apoio “a Hong Kong e às suas liberdades”. “Nenhuma violência é aceitável, mas o povo de Hong Kong deve manter o direito às manifestações pacíficas exercidas de acordo com a lei, o que foi cumprido hoje por centenas de milhares de pessoas”, disse Hunt, referindo-se ao protesto pacífico nas ruas da megacidade, antes e depois de a chefe do Executivo local, Carrie Lam, ter discursado na cerimónia que marcou o 22.º aniversário da transição do território.
Autocrítica antes da invasão
No Centro de Convenções e Exposições, a cerca de um quilómetro dos edifícios do Governo de Hong Kong, Carrie Lam prometeu ouvir as razões dos manifestantes e chegou a esboçar uma autocrítica, antes da invasão do Parlamento.
“Os incidentes dos últimos meses provocaram controvérsias entre o povo e o Governo. Isso fez-me perceber que eu, enquanto política, tenho de me lembrar sempre da necessidade de captar o sentimento do povo de forma correcta”, disse a responsável.
A chefe do Executivo de Hong Kong referia-se à principal queixa dos milhões de manifestantes que saíram às ruas, nas últimas semanas, para protestarem contra a intenção do Parlamento de aprovar uma proposta de lei que entra em conflito com a identidade de grande parte da população.
Se essa lei for aprovada, qualquer pessoa suspeita de cometer crimes poderá ser extraditada para a China continental, onde o sistema judicial não garante a independência em relação ao poder político, ao contrário do que acontece em Hong Kong.
Na sequência dos protestos, as autoridades do território tentaram acalmar a situação prometendo que os tribunais de Hong Kong terão a última palavra nos pedidos de extradição, e que apenas serão avaliados os processos de pessoas condenadas a um máximo de sete anos de prisão.
Mas as promessas do Governo liderado por Carrie Lam não foram suficientes para acalmar os protestos. E o facto de a proposta ter sido apenas suspensa, e não posta de lado, criou ainda mais revolta, principalmente entre a população mais jovem, que acusa Pequim de estar a forçar mudanças em Hong Kong para que o território venha a ser administrado à imagem da China continental.
Apesar de ser um território autónomo da China, à semelhança de Macau, os habitantes de Hong Kong têm um passado de defesa da independência dos seus sistemas político e judicial em relação a Pequim.
Nos últimos anos, os jovens de Hong Kong têm endurecido a luta contra o que dizem ser a ofensiva da China para acelerar uma assimilação total, depois de Pequim ter recebido o território, das mãos do Reino Unido, com a promessa de manter liberdades como o direito à manifestação e a independência do sistema judicial.
Em particular, o movimento pró-democracia exige que a eleição para o Parlamento local e para o cargo de chefe do Executivo sejam feitas por sufrágio universal e directo. Em 2014, o Governo central chinês determinou que os eleitores de Hong Kong só podem escolher o seu chefe do Executivo de uma lista de até três candidatos seleccionados pela Comissão de Eleições – um órgão leal ao Partido Comunista chinês.
Fosso cultural
Por trás da divisão entre o movimento pró-democracia e as autoridades de Hong Kong, cada vez mais vistas como meras encarregadas de Pequim, está uma crescente animosidade entre a população do território e os chineses do continente.
Num artigo publicado esta segunda-feira no jornal South China Morning Post, a escritora e jornalista Audrey Jiajia Li fala na “deterioração das relações entre os dois lados na última década”.
“O resultado disso”, diz Li, é que “as diferenças culturais, emocionais e de acesso à informação aumentaram de forma significativa”.
A jornalista salienta que as imagens dos protestos das últimas semanas em Hong Kong não circularam na China continental, barradas pela grande muralha electrónica que filtra a informação do exterior. “As únicas narrativas visíveis são as dos media estatais, que culpam a ‘interferência externa’ pela situação”, diz Li, o que tem levado muitos chineses a acreditarem que os manifestantes de Hong Kong são “marionetas comandadas pelos Estados Unidos ao serviço da sua guerra económica contra a China”.
À medida que as novas gerações na China continental foram crescendo num clima de crescimento económico, olhando para o que se passava em Hong Kong como um sinal da decadência do território, foram também crescendo as tensões culturais entre os dois povos, o que foi estimulando os sentimentos nacionalistas.
“O resultado é triste”, diz a jornalista. “Termos depreciativos, como ‘gafanhotos’, são usados para descrever os chineses do continente”, acusados de fazerem subir os preços das casas, de provocarem a ruptura dos serviços de saúde e de agravarem a desigualdades entre ricos e pobres.
Numa sondagem feita em 2008, 41% dos jovens entre os 18 e os 29 anos, e 54% acima dos 30 anos, identificavam-se como chineses; na semana passada, uma sondagem da Universidade de Hong Kong mostrou que apenas 11% da população respondeu da mesma forma, um novo mínimo desde que há registos.
Com António Saraiva Lima