A miúda que ganhou e o miúdo que esteve para ser crucificado
Enquanto a saga de Malala sobe à cena num teatro, um rapaz saudita esteve perto da crucificação.
São histórias que se contam por miúdos, na dupla acepção do termo. A de Malala Yousafzai, de projecção mundial, converteu-se agora numa peça de teatro em Portugal, depois de já ter sido contada em múltiplos artigos, em entrevistas, em filme e em livro. Malala, a Miúda Que Ganhou, teve antestreia em Maio, no espaço do grupo de teatro A Barraca e há-de fazer-se à estrada em Setembro, porque a peça foi pensada como espectáculo itinerante. “Vamos contar a história de uma menina que nasceu no vale do Swat, entre o Afeganistão e o Paquistão; Malala, a filha do professor, uma menina que arriscou a vida para que as suas colegas e todas as meninas da sua terra pudessem ir à escola.” Assina a criação, narração e interpretação de Malala a actriz Maria do Céu Guerra, a mesma que em Novembro de 2018 ali estreou À Volta o Mar, no Meio o Inferno, peça baseada na viagem que Anton Tchekov fez, em 1890, de Moscovo até Sacalina, “a mais cruel ilha de condenados do seu tempo”.
Quando Malala se tornou uma “estrela” sem querer, depois de quase ter sido morta pelos sinistros taliban no seu combate de ódio à cultura, tinha 15 anos. Mas Murtaja Qureiris, o outro jovem desta história, era mais novo quando foi preso na Arábia Saudita: apenas 13 anos. Hoje tem 18, continua preso e chegou a ser anunciado que iriam crucificá-lo, desmembrando-lhe depois o corpo (deve ser um fetiche saudita, o desmembramento, a julgar pelo tristemente célebre caso do jornalista Jamal Khashoggi, assassinado no consulado saudita em Istambul, em 2018). De que crime é acusado Murtaja Qureiris? Quando tinha 10 anos, ele e um grupo de rapazes circularam de bicicleta pelas ruas de uma cidade do Leste saudita, tendo Murtaja pegado num megafone e gritado: “As pessoas exigem direitos humanos!” Parece uma coisa simples, inofensiva, mas não na Arábia Saudita, porque um protesto político é um crime.
A este “crime” vieram juntar-se outros, nas acusações feitas, mas não provadas, ao rapaz, quando ele foi preso em 2014, três anos depois (a marcha das bicicletas ocorreu em 2011): alegadamente recrutado por uma célula terrorista, Murtaja Qureiris teria depois participado em ataques armados contra polícias, uma farmácia e um veículo diplomático alemão. Tudo junto, aplicaram-lhe uma pena inicial de 12 anos e quatro meses de prisão (suspensa, porque era menor), mas segundo a Amnistia Internacional, que denunciou o caso, Murtaja esteve pelo menos quatro anos sem direito a falar com um advogado, e terá sido submetido a espancamentos e actos de intimidação durante os interrogatórios. Até que o procurador saudita responsável pelo caso pediu para ele a pena de morte e logo pelo método de execução mais violento: a crucificação, seguida do desmembramento do corpo. Alertada a opinião pública internacional, graças à Amnistia, o regime recuou. “Ele não será executado”, garantiu o representante do governo saudita à Reuters, citado depois na CNN e na Al Jazeera, dizendo ainda que até pode ser que o libertem até 2022. O que lhe farão entretanto é que não se sabe. Mas os antecedentes, dele e de outros (tortura, espancamentos, intimidações), não deixam antever nada de animador. Pior sorte tiveram os 37 cidadãos decapitados em Abril, acusados de “crimes de terrorismo”, três dos quais seriam menores à data da execução.
O terror de Estado que impera na Arábia Saudita, e que os seus aliados incompreensivelmente toleram em nome de negócios, é justificado com uma base “cultural”. E também os taliban têm a sua “cultura”, evidentemente. E essa bane a cultura dos outros, por isso eles proíbem as meninas de frequentarem a escola, porque a única coisa que as mulheres devem aprender é a ser submissas. Foi isso que, a 9 de Outubro de 2012, fez de Malala (que insistia em estudar e desafiava outras a fazerem o mesmo) um alvo: ia ela numa carrinha escolar, quando dois taliban armados entraram, perguntaram por ela e balearam-na na cabeça. Levada para um hospital de Birmingham, pela família, foi milagrosamente salva e tornou-se um ícone do direito das mulheres a acederem à escola, em qualquer parte do mundo e de qualquer origem, condição social ou religião. Passou a ir à escola livremente e deram-lhe o Nobel da Paz.
Mas as “culturas” desumanas que ameaçam as Malalas e os Murtajas deste mundo não são um exclusivo dos sinistros taliban ou do inexplicavelmente impune regime saudita. Um jovem português de 26 anos, Miguel Duarte, arrisca em Itália 20 anos de prisão caso venha a ser condenado por ajuda à imigração ilegal. Ele, e mais nove tripulantes do navio Iuventa, de uma organização não-governamental alemã de resgate humanitário no Mediterrâneo, terão salvado 14 mil pessoas entre 2016 e 2018. Depois o barco foi arrestado e todos eles foram constituídos arguidos pela justiça italiana. “A nossa motivação era salvar vidas humanas, impedir que as pessoas morressem afogadas como, na verdade, qualquer Estado devia garantir que se faz”, argumenta Miguel. Chegará para o salvar das grades por longos anos? A civilização de que tanto gostamos, e que tanto se choca com carrascos, deve encontrar a resposta adequada.