Milhões à frente do tanque
É surpreendente a coragem que milhões tiveram para a sair às ruas e protestar contra uma proposta de lei de extradição que permitiria que criminosos fossem julgados na China continental.
Ainda no início deste mês, olhávamos para a China como o país que três décadas depois tinha transformado Tiananmen num “não acontecimento”, um vazio de memória conseguido graças ao controlo férreo de informação pelo Governo comunista chinês e a uma geração que, beneficiando de crescimento económico, colocou claramente as liberdades cívicas em plano afastado.
Por isso, mesmo que Hong Kong seja Hong Kong e não propriamente a China, perante a capacidade do regime de obliterar esse grito de liberdade de 2007, é surpreendente a coragem que milhões tiveram para a sair às ruas e protestar contra uma proposta de lei de extradição que permitiria que criminosos fossem julgados na China continental.
Para desafiar o poder de Xi Jinping, que em 2017 disse a propósito de Hong Kong que “as tentativas de desafiar o Governo central” seriam uma “linha vermelha inadmissível”, é preciso perceber que estes milhões sabem da capacidade que o regime tem – mesmo com todas as garantias dadas pelo Governo de Hong Kong – de transformar um opositor político num criminoso vulgar que poderia ser extraditado e julgado por tribunais que se submetem à vontade do Partido Comunista.
A coragem dos milhões de habitantes de Hong Kong que encheram as ruas com as suas t-shirts pretas deve estar também a ser alimentada pela noção de que uma medida que surgiu para resolver um caso de delito comum – o assassinato de uma mulher em Taiwan – se poderia transformar na brecha por onde se esvai o estatuto especial desta Região Administrativa Especial.
Porque não é só a questão da liberdade que é posta em causa, mas também a sua riqueza económica. Para se manter como o oitavo território mais exportador do mundo, para continuar a ser sede para a Ásia de mais de 1300 firmas globais, Hong Kong tem de continuar a manter o estatuto que lhe permite ser vista como uma porta de entrada para o gigantesco mercado chinês, mas regendo-se pelas regras que governam as economias ocidentais.
Acabar com a independência do poder judiciário, perdendo as garantias legais que atraem empresas, ou até arriscar que os Estados Unidos passem a olhar o território como parte indistinta da China, cessando o regime de excepcionalidade com que é tratado na guerra tarifária, significa o caminho do declínio para Hong Kong.
Os milhões que saíram para a rua garantiram, para já, a continuação da sua forma de vida, conseguindo provar que quando quase um terço da população de um território se mobiliza é difícil que o tanque da repressão prossiga o seu caminho.